João Cabral de Melo Neto: há 25 anos, morria o poeta engenheiro das palavras
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Preciso. Exato. Consciente do valor, do peso e da forma de cada termo, cada sentença, cada verso.
O pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), antítese da teoria de que trova é resultado de uma inspiração mágica, tornou-se um dos maiores poetas da língua portuguesa justamente porque perseguiu, com afinco, norma e rigor, a inalcançável formosura da sublimidade.
Fazia versos porquê quem matematiza. Rimava porquê quem resolve das palavras uma equação.
Debilitado pela facciosismo e sofrendo de crises de depressão, João Cabral morreu em 9 de outubro de 1999 no Rio de Janeiro, onde vivia.
Já estava imortalizado pela vasta e importante obra, pelos prêmios recebidos em vida e pelo ingresso na Ateneu Brasileira de Letras — desde o termo dos anos 1960 ocupava a cadeira 37 — e na Ateneu Pernambucana de Letras.
Especulado porquê candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, o poeta tinha vários outros reconhecimentos, entre eles o Prêmio Neustadt, o Prêmio Rainha Sofia de Trova Iberoamericana e o Prêmio Camões.
Profissionalmente, Cabral foi diplomata. De 1945 a 1990, período em que serviu ao Itamaraty, viveu em 14 cidades diferentes: Barcelona, Londres, Brasília, Sevilha, Marselha, Madri, Genebra, Berna, Assunção, Dacar, Quito, Tegucigalpa, Porto e Rio de Janeiro.
Sua estreia na literatura ocorreu em 1942, com a publicação de Pedra do Sono. A produção poética se tornaria uma permanente até o termo de sua vida. Entre as principais obras do pernambucano destacam-se O Engenheiro de 1945, Psicologia da Formação com a Fábula de Anfion e Antiode, de 1947, O Cão Sem Plumas, de 1950, O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaripe de Sua Nascente à Cidade do Recife, de 1953, Uma Faca Só Lâmina, de 1955, A Ensino Pela Pedra, de 1966, Museu de Tudo, de 1975, e Tecendo a Manhã, de 1999. Além, é evidente, do seu maior sucesso: Morte e Vida Severina, publicado originalmente em 1955.
“Ele é um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Sua obra é mais vasta e muito mais diversa do que imaginam aqueles que pensam que ele é exclusivamente o responsável de Morte e Vida Severina“, diz à BBC News Brasil o poeta e professor de literatura Frederico Barbosa.
Barbosa destaca que essa obra mais conhecida de Cabral costuma ser “mal lida”, vista “exclusivamente porquê um panfleto sobre a miséria do sertão”. Mas que o poeta “deixa muito evidente que [essa pobreza] não vem da natureza, vem das precárias distribuições de renda e terreno”.
“João Cabral é certamente um dos maiores poetas do nosso país. Eu considero talvez o maior”, enfatiza à reportagem a tradutora, pesquisadora e professora de literatura Sandra Mara Stroparo, docente na Universidade Federalista do Paraná (UFPR).
Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o jornalista e professor Miguel Sanches Neto diz à BBC News que o responsável de Morte e Vida Severina “é um poeta único na tradição de língua portuguesa, marcada pela exacerbação do eu”.
“Contra a tendência lírica, ele construiu uma trova objetual, em terceira pessoa, em que o outro e as coisas ocupam o meio da experiência lírica”, analisa.
“É um poeta em que o crítico literário e de cultura se manifesta, e não uma individualidade. Outro vista disruptivo é ser moderno usando formas fixas, legado da geração de 45”, acrescenta Sanches Neto, citando o grupo da terceira geração do modernismo.
“Com isso, matou a inspiração ou a genialidade porquê fatores poéticos. Nesse sentido, é um poeta único.”
Seu estilo marcado pelo rigor técnico e pela procura da exatidão fez com que ele acabasse sendo chamado de “engenheiro”.
Mas de forma alguma isso pode ser confundido com insensibilidade ou frieza. “A obra poética de João Cabral destaca-se pela procura de uma forma rigorosa e estruturada, refletindo seu conhecimento sobre temáticas sociais. O regionalismo é meão, com ênfase na vida e nas dificuldades do povo nordestino, mormente em relação à seca, que simboliza a luta e a resistência”, comenta à reportagem o professor Vicente de Paula da Silva Martins, docente na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).
O poeta e tradutor André Capilé, professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica à BBC News Brasil que há na literatura de Cabral “um projecto de concisão e investimento na termo mais precisa, mais justa, em termos de elaboração” e nascente estilo veio em um momento em que “a trova brasileira ia ficando muito pastosa, muito prolixa”.
“Ele nos traz de novo uma espécie de grande aterramento do espaço da termo”, diz.
“Sua linguagem é simples, mas rica em metáforas originais, conectando a natureza porquê um agente ativo na vida humana. Cabral se via porquê um engenheiro das palavras, transmitindo mensagens claras e objetivas. Outrossim, aborda a quesito humana, a solidão e a procura por sentido”, complementa Martins.
Barbosa situa o livro A Ensino Pela Pedra porquê a obra-prima cabraliana e “um dos maiores livros de trova que já foram escritos no mundo”.
“É um livro de um poeta já maduro que consegue fazer uma obra matemática com idas e vindas, algumas relações escondidas que ainda não foram devidamente estudadas e reveladas, as relações entre os poemas, os versos. Cada poema do livro tem duas partes, essas partes se relacionam e se relacionam com outras partes de outros poemas”, detalha.
“É um pouco que ainda está por ser devidamente analisado, devidamente dissecado.”
O professor Martins comenta que nesse livro “o poeta utiliza a pedra porquê símbolo da resistência nordestina, estabelecendo uma relação entre forma e temática que enriquece sua obra”.
“Sua linguagem, repleta de imagens concretas e musicalidade, reflete um compromisso com a identidade cultural brasileira. Outrossim, a intertextualidade com poetas contemporâneos enriquece o diálogo literário, ressaltando sua influência”, acrescenta.
“A voz de Cabral é crucial para a literatura do século 20, propondo novas formas de entender a verdade brasileira e solidificando seu legado na trova contemporânea.”
Ecos cabralinos
Essa forma sui generis de fazer trova se tornou seu principal legado. Sanches Neto diz que João Cabral “não deixou discípulos, porque os gênios são figuras solitárias”. Pode ser verdade.
Mas verdade também é, que porquê apontam diversos críticos, a trova brasileira tem outros exemplos que seguem a trilha ensejo pelo pernambucano. Sebastião Uchoa Leite (1935-2003), por exemplo.
Mais recentemente, nomes porquê o do apreciador confesso Frederico Barbosa, também recifense. A eles, se juntam ainda os cariocas Paulo Henriques Britto e Felipe Riqueza, o mineiro de Juiz de Fora Edimilson de Almeida Pereira e o paulistano Arnaldo Antunes.
“Há, depois de João Cabral, muitos ecos de sua poética os quais se perpetuaram e continuam dando bons frutos. O modo porquê manipula a termo autoriza-nos mesmo a expressar que o próprio concretismo bebe nessas fontes criadoras do responsável de Morte e Vida Severina. Mas há outros aspectos que alimentam a trova brasileira ulterior a ele: o tirocínio da metalinguagem, os processos experimentalistas que incidem sobre o léxico até o limiar da termo na era do dedo e o formalismo que não cerceia, mas liberta de qualquer obrigação em nome de oferecer, também pela ocupação do espaço, inusitadas maneiras de produzir sentido”, afirma à BBC News Brasil o professor de literatura Emerson Calil Rossetti, fundador do conduto no YouTube Escol da Língua.
“Para dar um toque mais ‘moderno’ e talvez subversivo ao meu exemplo, citaria uma referência ainda fora do cânone tradicional: a obra de Arnaldo Antunes que, emergindo da linguagem potencialmente expressiva, edifica-se numa arquitetura em que os sentidos poéticos nunca colidem com a racionalidade da forma, antes tiram dela o exato proveito para o delícia de quem lê, vê e ouve as composições do tribalista”, acrecenta Rossetti.
Martins comenta que Riqueza “dialoga com o estilo” de Cabral ao refletir “seu rigor formal e concisão”. “Ambos os poetas incorporam elementos cotidianos que provocam reflexões profundas”, argumenta.
“Riqueza utiliza questionamentos que evocam a voz inquisitiva de Cabral, transformando objetos comuns em símbolos de temas universais, porquê a vida e a morte. A dualidade entre preservação e efemeridade, presente em suas obras, destaca a complicação da experiência humana. Por termo, o tom filosófico das criações [dos dois] convida o leitor a ponderar questões existenciais, revelando uma sensibilidade compartilhada na exploração da verdade.”
Responsável do livro O Sabor dos Extremos: Tensão e Dualidade na Trova de João Cabral de Melo Neto, de Pedra do Sono a Andando Sevilha, o professor de literatura Waltencir Alves de Oliveira, da UFPR, vê “a presença de princípios compositivos e modos de operar com a termo poética” ao estilo cabralino até “mesmo em poetas que refutam a existência de um diálogo com sua trova”.
“Difícil, mas, listar nomes de possíveis seguidores, uma vez que os modos de apropriação, citação e menção acionados pela trova contemporânea podem tornar o diálogo com a tradição implícito, ou até mesmo escamoteado. Sobretudo porque, em alguns aspectos, pode se verificar mais um falar contra do que um falar com, em ambos os casos o poeta e sua trova parecem ter se convertido em pedágio quase obrigatório para quem deseja passar e edificar uma trova original e com marcas singulares”, diz ele, à BBC News Brasil.
“Dizendo, em outras palavras, novas facetas e interpretações dadas ao mesmo poeta foram assegurando a ele um lugar de destaque, possibilitando que vários matizes fossem se acrescentando a essa trova a cada novo e novidade poeta que, ao assimilá-lo o altera significativamente”, completa Oliveira.
A professora Stroparo ressalta que sendo “muito da linguagem que ele criou” específico e privativo, “muitos são tributários dele hoje”. Tem ainda os poetas marginais [dos anos 1970], com suas reações negativas [frente a Cabral]. Eles gostavam de se posicionar dizendo que queriam uma linguagem mais fácil, mais direta. Era uma maneira de expressar ‘eu sou anticabralino'”, lembra ela.
“Mas acho que o principal nome da trova contemporânea que a gente pode vincular ao João Cabral é o do poeta Paulo Henriques Britto. Considero-o a melhor junção da voz do [Carlos] Drummond [de Andrade] com a voz do Cabral, que aparece na sintaxe da trova do Britto, nas escolhas formais da trova do Britto”, comenta a professora.
Capilé define Cabral porquê “uma influência incontornável dos anos 50 em diante” na trova brasileira. “Em maior ou menor intensidade, ele sempre vai voltar porquê uma espécie de grande fantasma ao contemporâneo inesperado”, pontua.
Um fazer poético de que poucos são capazes
Menos do que mostrar nomes, o poeta Barbosa ressalta que o legado de Cabral é “a teoria de que trova não é emoção, não é sentimento, não vem de um furor”.
“Mas que é um pouco muito elaboradora. O que é uma coisa óbvia, […] mas as pessoas tendem a preterir isso e até hoje muita gente pensa que trova é sentimento. João Cabral colocou a teoria da trova porquê elaboração profunda, a procura de uma linguagem adequada. Muita gente ainda rejeita isso”, salienta.
Para Rossetti, “é preciso ainda evidenciar a habilidade da trova cabralina em se lastrar com maestria entre a cultura popular e a erudita”, um “feito que poucos poetas são capazes de realizar”.
Oliveira conta que em seu livro a reverência da obra de Cabral buscou explicar essas características, mergulhando na “modo do poeta porquê responsável que refutava o lirismo-amoroso, recusava a explicitação da subjetividade” e pleiteava “para si mesmo um lugar de recusa de um ideal poética, do qual, talvez a estética romântica fosse, segundo o próprio Cabral, a principal disseminadora”.
Ele reconhece que livros, ensaios e entrevistas do próprio poeta “insistiam na asserção, por vezes categórica por segmento dele, de uma trova cerebrina, racional e assentada sobre possante ideal construtivo”, e isto acabou por “lhe render epítetos porquê ‘poeta engenheiro’, ‘poeta arquiteto’, ‘geômetra’, etc.”.
“Sua influência persiste no século 21, dialogando com poetas contemporâneos e reafirmando sua relevância na literatura”, resume Martins.
“Assim, Cabral consolida sua voz única, precípuo para entender a trova moderna e contemporânea. Assumindo o papel de historiador da literatura brasileira, afirmo que, no que diz reverência à autenticidade e originalidade, a literatura vernáculo pode ser compreendida em duas fases distintas: antes e depois de Cabral de Melo Neto.”
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