Eleições nos EUA 2024: a amiga de Kamala Harris que sofreu abuso sexual e inspirou carreira de promotora da candidata
Até 2020, Wanda Kagan levava uma vida perfeitamente anônima como funcionária administrativa de uma rede hospitalar em Montreal, no Canadá.
Mas, em 23 de setembro daquele ano, um vídeo postado por Kamala Harris no X (que ainda se chamava Twitter) a colocou em evidência para o público.
“Quando eu estava no ensino médio, soube que minha melhor amiga estava sendo abusada sexualmente pelo pai (padrasto)”, contou a então senadora pela Califórnia e aspirante a vice-presidente dos Estados Unidos, remontando à época em que viveu com a mãe e a irmã na província canadense de Quebec.
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No que parecia ser um trecho de uma entrevista, Harris explicou que sua colega de turma chegava triste na sala de aula, que ela parecia nunca querer ir para casa, que ela sempre sentia que havia algo errado com ela.
Então, quando ela confidenciou a ela o que estava acontecendo, Harris a convidou para morar com sua família.
“E, em grande parte, o motivo pelo qual eu quis ser promotora, foi para proteger pessoas como ela”, disse Harris no vídeo, referindo-se à profissão que exerceu antes de entrar para a política.
“Na verdade, a minha carreira como promotora se concentrou, sobretudo, em proteger mulheres e crianças, incluindo um período importante em que me especializei em casos de agressão sexual infantil”.
Poucos dias depois daquela postagem, em 5 de outubro de 2020, Kagan escreveu na seção de comentários: “Você é realmente uma pessoa incrível, e os americanos têm sorte de você estar lutando por eles, assim como você lutou por mim quando estávamos na escola.”
E desde aquela época — seja em sua empreitada para chegar à vice-presidência em 2020, ou agora que disputa as eleições de 5 de novembro para se tornar a primeira mulher a ocupar a Casa Branca —, Kagan não hesitou em fazer campanha para sua melhor amiga de adolescência.
Características e interesses comuns
Kagan conheceu a agora candidata democrata à presidência quando ela havia acabado de se mudar para Montreal com a irmã, Maya Harris, e a mãe, Shyamala Gopalan, uma cientista da Índia especialista em biomedicina.
O ano era 1976 e, já divorciada do pai das meninas, o eminente economista afro-americano de origem jamaicana Donald J. Harris, Gopalan decidiu avançar na carreira.
Ela aceitou o cargo de pesquisadora especializada em câncer de mama no Jewish General Hospital, na capital de Quebec, que conciliaria com dar aula na Faculdade de Medicina da Universidade McGill.
Não é uma época sobre a qual Harris discorre muito, mas ela descreveu o “choque cultural” da mudança de país em sua autobiografia oficial, As verdades que nos movem.
O livro foi lançado em janeiro de 2019, dias antes de ela lançar pela primeira vez sua candidatura à presidência; candidatura que abandonou poucos meses depois, antes mesmo das primeiras primárias do Partido Democrata.
“Eu tinha 12 anos, e a ideia de me mudar da ensolarada Califórnia em fevereiro, no meio do ano letivo, para uma cidade estrangeira onde se falava francês e que estava coberta de 3,5 metros de neve, era no mínimo perturbadora”, Harris escreveu.
“Minha mãe tentou fazer parecer que era uma aventura, nos levou para comprar nossos primeiros casacos acolchoados e luvas térmicas, como se fôssemos nos tornar exploradoras do grande inverno do Norte.”
Inicialmente, a matriarca matriculou as irmãs em uma escola de língua francesa. Eram tempos conturbados em Quebec, com um partido nacionalista em ascensão e guerras culturais por causa da língua.
“Eu brincava que eu me sentia um pato, porque o dia todo na escola nova eu ficava dizendo ‘Quoi? Quoi? Quoi?‘ (O quê? O quê? O quê?)”, narrou Harris no livro.
Kagan, no entanto, não se lembra de nada da angústia e da sensação de deslocamento descrita pela pessoa que, nos cinco anos seguintes, se tornaria sua melhor amiga e confidente.
Pelo contrário, ela se lembra de Harris como enérgica, extrovertida, alegre e empática, alguém com uma personalidade forte e um grande senso de justiça, apesar de sua pouca idade, adjetivos com os quais ela a descreveu em várias entrevistas.
A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, também pediu uma entrevista por meio do e-mail que ela disponibilizou para solicitações de imprensa e de suas redes sociais, mas até o momento da publicação desta reportagem, não havia obtido resposta.
Ela contou que uma das primeiras lembranças que tem de Harris é de quando, aos 13 anos, ela organizou um protesto de crianças em frente ao condomínio onde moravam, porque o proprietário havia proibido que elas brincassem no gramado, obrigando-o a voltar atrás.
Mas elas se tornaram realmente amigas quando começaram a cursar a oitava série do programa bilíngue da Westmount High School, localizada em um dos distritos mais ricos do Canadá.
Elas tinham várias características em comum, contou Kagan, inclusive o fato de serem de origem étnica mista — no caso dela, filha de pai afro-americano e mãe branca.
“Na escola, você pertencia ao grupo dos brancos ou ao grupo dos negros”, explicou a canadense ao jornal americano The New York Times.
“Como não nos encaixávamos exatamente em nenhum deles, nos adaptamos a ambos”, acrescentou.
Embora em outras entrevistas, Kagan tenha dito que Harris se identificava principalmente com a comunidade afro-americana.
Fundada em 1974, a escola era frequentada por alunos do distrito rico de Westmount, mas também de Little Burgundy, conhecida como “o Harlem do Norte”, que com suas igrejas, centro comunitário e clubes de jazz era um polo da cultura negra.
Além disso, as duas também compartilhavam vários hobbies e se encontravam em várias atividades extracurriculares, como desfiles de moda ou no grupo de animação.
Talvez o momento em que elas se aproximaram mais tenha sido no âmbito das Super Six — mais tarde, Midnight Magic —, um grupo de seis meninas que, vestidas com roupas coloridas caseiras, e ao ritmo de músicas de Diana Ross ou Michael Jackson, animavam eventos em escolas ou lares de idosos.
Até hoje, em vários eventos políticos e públicos, Harris mostra que não perdeu o ritmo — e se anima a dançar com facilidade.
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Outro momento que Kagan destaca com frequência em conversas com a imprensa, talvez para dar uma ideia das causas com as quais Harris já estava alinhada na adolescência, foi quando ela convenceu seu grupo de amigas a irem juntas ao baile de formatura sem acompanhante, para que nenhuma delas se sentisse excluída.
“Naquela época, 40 anos atrás, se você não tivesse um par, não ia ao baile”, afirmou Kagan ao roteirista Mike Wiser durante uma entrevista, em 6 de agosto, para a série de documentários Frontline.
“Agora, como adulta, percebo o quão poderosa foi aquela decisão.”
Mas nada a marcou mais do que o episódio com o qual abrimos esta reportagem —e que a agora vice-presidente também incluiu em sua autobiografia.
Quando Kagan decidiu contar a Harris o que ela havia mantido em segredo por tanto tempo — os abusos físicos e sexuais por parte do padrasto —, ela teve uma reação inesperada.
— Bom, então você vai ter que vir morar com a gente.
— Mas você nem sequer contou para a sua mãe…
Quando estava morando na casa de Harris, Kagan contou em sua entrevista ao Frontline que, pela primeira vez em muito tempo, sentiu estabilidade, alívio e um senso de pertencimento.
E o ambiente “estruturado” e estudioso daquela casa a ajudou a se concentrar e a acreditar em si mesma, ela disse.
Perda de contato e reconexão
Em 1982, Harris retornou aos Estados Unidos para iniciar seus estudos em Ciência Política e Economia na Universidade Howard em Washington DC, que completaria com um doutorado em Direito na Universidade da Califórnia em San Francisco.
Enquanto isso, Kagan seguiu em contato direto com a mãe dela, Gopalan, que permaneceu por 16 anos em Montreal, onde desenvolveu um método de análise de tecido mamário cancerígeno que se tornou um procedimento padrão no país.
Mas com o passar do tempo e as mudanças, as amigas acabaram perdendo contato.
Anos depois, em 2005, Kagan viu Harris, então promotora pública de San Francisco, no programa da apresentadora Oprah Winfrey — e a procurou, enviando e-mails para endereços oficiais.
Poucos dias depois, ela recebeu um telefonema: “Oi, sou eu, Kamala”. “Eu falei que não achava que ela iria ligar. ‘Bem, você não é qualquer pessoa'”, ela disse que Harris respondeu.
Elas também retomaram a amizade exatamente de onde haviam parado.
E, desde então, não pararam de exibi-la na televisão e em várias entrevistas.
No dia 23 de agosto, no encerramento da Convenção Nacional Democrata, durante seu discurso de aceitação da candidatura à presidência, Harris enfatizou mais uma vez como o caso da amiga marcou sua trajetória profissional.
“É uma das razões pelas quais me tornei promotora: para proteger pessoas como Wanda, porque acredito que todos têm direito à segurança, dignidade e justiça”, disse ela no palco do United Center, em Chicago.
“Como promotora, quando eu tinha um caso, eu o pleiteava não em nome da vítima, mas em nome do povo, e fazia isso por uma simples razão: em nosso sistema de Justiça, o dano contra qualquer um de nós é um dano contra todos nós.”
“É assim que eu sempre explico aos sobreviventes, para confortá-los e lembrá-los de que ninguém deve ser forçado a lutar sozinho. Estamos juntos nessa”, acrescentou, buscando criar um contraste com seu adversário, o republicano Donald Trump, que tem vários processos judiciais abertos e uma condenação.
Entre as milhares de pessoas presentes naquela noite, sua melhor amiga de adolescência estava ouvindo emocionada.
Hoje, ela enche suas redes sociais com fotos da sua juventude combinadas com fotos mais atuais de reuniões na Casa Branca, todas acompanhadas de hashtags de apoio à campanha de Harris à presidência.
“Ela teve um impacto enorme na minha vida, a ponto de eu talvez não estar onde estou hoje se não fosse por sua intervenção naquela época”, afirmou Kagan, que agora se define como palestrante motivacional e filantropa, à rede Fox 5, em maio de 2022.
“Mas ouvir que eu também tive influência sobre ela foi muito especial.”
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