Investigação da BBC encontra inglês suspeito de caso que levou brasileiros inocentes à prisão

Daniel Guerra no veleiro Rich Harvest em Salvador, Brasil - 2017

Crédito, Daniel Guerra

Legenda da foto, Daniel Guerra no veleiro Rich Harvest em Salvador, em 2017

  • Author, Colin Freeman e Cristine Kist
  • Role, Para o World of Secrets e BBC Africa Eye e da BBC News Brasil em Londres

Para Daniel Guerra, velejador brasiliano que aspirava a viajar pelo mundo, aquele pregão de trabalho era um sonho que estava a ponto de se tornar verdade.

O pregão dizia que o proprietário de um iate britânico procurava ajudantes de convés para levar seu navio do Brasil para a Europa – uma das grandes viagens oceânicas do mundo.

Não haveria salário, mas todas as despesas seriam pagas e, o que era ainda mais importante, Daniel acumularia milhas e segmento da experiência necessária para obter seu maior objetivo.

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“O meu sonho na idade era me tornar capitão de barcos e ir trabalhar na Europa”, lembra Daniel, hoje com 43 anos.

Ao ler o pregão, postado na internet por uma escritório de recrutamento de velejadores, ele conta à BBC que se sentiu “superfeliz, supercontente”.

E as coisas pareciam ainda melhores quando Daniel e seu colega Rodrigo Dantas, que também havia sido contratado para o trabalho através do mesmo pregão online, conheceram o seu novo empregador britânico.

Eles temiam que se tratasse de um ricaço esnobe ou um influencer posando de uma vida de luxo, um tipo mandão. Mas que zero.

George Saul era uma figura sorridente e simpática, pouco afeita às formalidades. Os velejadores, segundo ele, podiam até chamá-lo pelo seu sobrenome: “Fox” (raposa, em português).

“Eu costumava trabalhar em alguns barcos e os donos eram velhos, superexigentes, supergrosseiros e falavam comigo de cima para reles”, conta Rodrigo, 32, à BBC. “Ele [Fox] era supereducado, supersorridente e prazenteiro.”

Daniel Guerra (à esquerda) e Rodrigo Dantas (à direita) com George Saul, também conhecido como "Fox", em Salvador, Brasil - 2017

Crédito, Daniel Guerra

Legenda da foto, George Saul (C) pediu aos velejadores – Daniel Guerra (E) e Rodrigo Dantas (R) – que o chamassem pelo sobrenome de “Fox”; ambos ficaram impressionados com sua simpatia

Fox passou até no teste de aprovação dos exigentes pais de Rodrigo, que estavam preocupados com seu rebento fazendo uma viagem tão longa em um navio que pertencia a um completo estranho, e pediram para conhecê-lo pessoalmente. Eles gostaram do jeitão do britânico.

Ficaram sabendo que Fox havia trazido o Rich Harvest para o Brasil para reformas e buscava uma tripulação para velejar o veleiro de volta à Europa. Além dos novatos, Rodrigo e Daniel, haveria mais dois, incluindo um capitão qualificado.

“[Parecia] uma pessoa supra de qualquer suspeita. Tranquilo, educadíssimo”, lembra João, pai de Rodrigo.

Mas, no término das contas, os pais de Rodrigo não foram os únicos que quiseram verificar se tudo estava nos conformes a bordo do veleiro Rich Harvest.

No último porto antes de partir do Brasil, a polícia em Natal passou murado de seis horas procurando drogas no iate, com a ajuda de um cão farejador.

No entanto, eles não encontraram zero. Naquele momento, os velejadores brasileiros pensaram que se tratava exclusivamente de uma verificação de rotina. Eles já tinham ouvido falar de cocaína plantada em barcos e agora, pelo menos, imaginavam que estava tudo limpo.

“Foi minha primeira viagem internacional [marítima]. Eu imaginei: quando a gente viaja no aeroporto, a gente também passa por uma inspeção, até mesmo alguns cães farejadores trabalham no aeroporto também”, conta Rodrigo. “Pra mim, era porquê uma procura de rotina.”

O iate Rich Harvest fotografado na costa do Brasil em 2017

Crédito, Polícia Federalista

Legenda da foto, O Rich Harvest foi revistado pela polícia por seis horas antes de deixar o Brasil

Essas preocupações passavam longe quando a tripulação embarcou em sua jornada épica em 4 de agosto de 2017, com o litoral brasiliano desaparecendo lentamente detrás do veleiro.

Com Daniel e Rodrigo, havia mais um tripulante, um brasiliano (com quem a BBC não conseguiu contato e que, por isso, não será nomeado) e um capitão francesismo.

Fox, por sua vez, havia voltado para a Europa de avião dois dias antes.

“Estava um dia lindo, tempo perfeito, sol”, lembra Daniel, que publicou uma mensagem de gratulação a Fox em sua página no Facebook. O texto dizia: “A vida nos dá oportunidade e irmãos. Sou muito grato pela chance, Fox.”

Posteriormente duas semanas de viagem, o veleiro apresentou problemas no motor, obrigando-os a parar em Cabo Virente, um arquipélago próximo da costa da África.

Mas mais uma vez, Daniel e Rodrigo conseguiram ver as coisas pelo lado positivo. O país é um paraíso turístico, e Fox disse que lhes enviaria verba para que aproveitassem as ilhas enquanto os reparos eram feitos em uma marina lugar.

Assim, Daniel não se preocupou quando outros policiais chegaram para revistar a embarcação.

“Eles não encontraram zero no Brasil”, pensou consigo mesmo, “também não vão encontrar zero em Cabo Virente.”

Mas os policiais cabo-verdianos foram mais meticulosos do que os seus colegas brasileiros, usando equipamentos especiais para trinchar e expor o interno do navio.

Escondida sob fundos falsos, eles encontraram murado de 1,2 tonelada de cocaína – com valor estimado em £100 milhões (mais de R$ 600 milhões) pelo preço de mercado praticado nas ruas da Europa. Foi uma das maiores operações de consumição de droga de Cabo Virente.

“Eu não podia crer na hora. Só conseguia invocar o Fox de rebento da p*”, lembra Daniel. “Eu estava furioso, não conseguia admitir o que estava acontecendo, sabe?”

Daniel diz que percebeu imediatamente que sua situação era ainda mais delicada porque segmento das drogas estava escondida em um fundo falso que ficava justamente no quarto dele: “Não é risota. É uma tonelada de cocaína embaixo da tua leito, né? (risos).”

Os brasileiros foram detidos e levados para a prisão. Em março de 2018, a tripulação foi a julgamento em Cabo Virente.

Durante o julgamento, eles argumentaram ser totalmente inocentes. Os acusados insistiram que nunca tinham ouvido falar de Rich Harvest ou de seu proprietário até responderem ao pregão de trabalho.

Apesar disso, eles foram condenados a dez anos de prisão cada um.

Mas se a quantidade de droga apreendida era impressionante, a Polícia Federalista do Brasil, que também monitorava o caso, considerava que o “peixe grande” tinha escapado.

Para a polícia brasileira, o cabeça da operação era Fox, de quem veleiro tinha sido objeto de uma informação passada pela Sucursal Vernáculo de Combate ao Transgressão (National Transgressão Agency, NCA) do Reino Uno antes da saída do veleiro do Brasil.

Pacotes de cocaína encontrados no Rich Harvest

Crédito, Polícia de Cabo Virente

Legenda da foto, Pacotes de cocaína entre a droga apreendida pela polícia de Cabo Virente, escondida sob fundos falsos e tanques de chuva falsos no interno do Rich Harvest

Mas as coisas pareciam – momentaneamente – estar mudando.

Em agosto de 2018, Fox foi recluso na Itália, e as autoridades brasileiras entraram com um processo de extradição para que ele fosse enviado ao Brasil para responder às acusações no caso.

Mas a papelada chegou tarde demais, e Fox foi libertado – para grande frustração do solicitador brasiliano André Gonçalves. Gonçalves, que atua na Bahia e investigava o caso, temia que o britânico desaparecesse e se convertesse em fugitivo.

O solicitador conta que sua equipe havia mantido Fox e o Rich Harvest sob vigilância no Brasil por um bom tempo. A polícia brasileira acredita que as “reformas” que foram realizadas no navio tinham em segmento o objetivo de instalar compartimentos secretos na embarcação. As autoridades brasileiras acreditam que as drogas foram carregadas antes de os velejadores brasileiros serem contratados.

Gonçalves admite que, em um primeiro momento, desconfiou que os quatro velejadores também estariam envolvidos. “Se uma pessoa está em um navio referto de drogas, você acha que essa pessoa deve ter alguma coisa a ver com isso”, diz.

Mas acrescenta que, ao investigar seus antecedentes, não encontrou zero que os ligasse previamente ao mundo das drogas ou a Fox.

“Quanto mais fundo eu ia, ainda não conseguia encontrar uma conexão. Mas, ao mesmo tempo, isso fortalecia as evidências que tínhamos contra o Fox.”

As declarações de inocência dos velejadores também foram reforçadas por uma manadeira inesperada: o britânico Robert Delbos, o varão que, segundo a polícia brasileira, teria coordenado a reforma do navio.

Delbos, 71 anos, foi réprobo por tráfico de drogas no Reino Uno em 1988 e cumpriu pena de prisão de 12 anos. Ele tentou contrabandear 1,5 tonelada de maconha para o país.

Antes de o Rich Harvest partir do Brasil, policiais sob as ordens de Gonçalves observaram Delbos supervisionando o início das reformas do veleiro.

Inicialmente, suspeitaram que se tratasse da instalação de compartimentos secretos na embarcação, e por isso entraram com um processo de extradição na mesma idade em que pediram a extradição de Fox.

Delbos passou alguns meses em uma prisão de segurança máxima no Brasil aguardando julgamento, mas alegou que as drogas também haviam sido colocadas no navio em um momento ulterior, sem o seu conhecimento.

Ele foi absolvido depois a Justiça resolver que não havia elementos para provar que ele sabia dos planos de traficar as drogas.

Em entrevista à BBC, Delbos afirmou que até mesmo os traficantes de drogas possuem códigos de moral, e que Fox os havia violado ao ludibriar os velejadores e usá-los porquê mulas, sem que eles soubessem, em vez de contratar contrabandistas profissionais.

“Isso é ultrapassar totalmente o limite”, disse. “Isso não se faz.”

“Ele (Fox) era um varão estúpido e ganancioso. Em vez de remunerar a tripulação direitinho e contratar contrabandistas profissionais, ele contratou quatro caras inocentes.”

À medida que cresciam as dúvidas sobre a culpa dos velejadores, suas famílias iniciaram uma campanha pela sua libertação, que ganhou corpo e deu visibilidade ao caso no Brasil.

Em 2019, a Justiça de Cabo Virente anulou as condenações, e os brasileiros finalmente puderam voltar para morada.

Fox, por sua vez, voltou para o Reino Uno e nunca foi julgado.

Uma foto postada na conta do Instagram de George Saul, em que ele aparece velejando

Crédito, George Saul

Legenda da foto, Uma selfie de George Saul, também espargido porquê Fox, postada em seu Instagram

Aos 41 anos, Fox vive em uma morada nos subúrbios de Norwich, no leste da Inglaterra, cidade onde cresceu, frequentou a faculdade e se tornou um exímio velejador diletante, habituado a explorar a variada costa do Condado de Norfolk. Ele é empresário e proprietário de uma empresa imobiliária.

Em março do ano pretérito, Fox fazia segmento de uma associação empresarial lugar. Em suas redes sociais, chegou a publicar uma foto posando ao lado do portanto prefeito da cidade, James Wright (é importante ressaltar que não existe nenhum elemento para sugerir que o prefeito tivesse conhecimento das acusações contra Fox).

A BBC abordou o empresário quando ele chegava a um hotel de Norwich para um moca da manhã organizado semanalmente pela associação empresarial da qual fazia segmento (assista no documentário no início desta reportagem).

Fox se recusou a comentar sobre o Rich Harvest e o sofrimento causado aos velejadores inocentes. Questionado sobre as alegações de que seria um traficante de drogas, respondeu: “Não sou”.

Um porta-voz da escritório britânica de combate ao delito, NCA, disse que se a polícia brasileira ainda quiser levar o caso adiante, terá de entrar com um pedido de extradição.

O Ministério da Justiça do Brasil afirmou que não comenta casos individuais.

Enquanto isso, Rodrigo Dantas e Daniel Guerra estão tentando reconstruir suas vidas no Brasil, tendo há muito tempo despovoado seus sonhos de se tornarem capitães de barcos.

Daniel Guerra (à esq.) e Rodrigo Dantas (à dir.) brindando com duas canecas de cerveja em 2017

Crédito, Polícia Federalista

Legenda da foto, Daniel Guerra (à esq.) e Rodrigo Dantas (à dir.) já abandonaram há muito tempo os sonhos aos que brindaram em 2017

Rodrigo conta que, ao voltar para morada, teve dificuldades para encontrar trabalho porquê velejador, porque potenciais empregadores continuaram desconfiando de sua inocência.

Já Daniel afirma que suas ambições prévias de dar a volta ao mundo em um veleiro “ficaram trancadas em Cabo Virente”.

Ele diz que perdeu a capacidade de responsabilizar nas pessoas, uma qualidade vital para superar os percalços de uma longa viagem oceânica.

Mesmo agora, diz que ainda se pergunta quem era realmente Fox – aquele britânico “bacana” a quem se sentiu tão grato, de quem pregão de trabalho virou sua vida de cabeça para reles.

Daniel diz que “gostaria muito de ver a justiça ser feita”, mas não deseja encontrar Fox nunca mais.



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