Jovens negros carregam traumas de reconhecimento fotográfico injusto
Em 2018, o porteiro Carlos Alexandre Hidalgo foi a uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência por conta de um delito virtual que sofreu. O que deveria resolver um problema revelou a existência de outro muito mais grave: um policial afirmou que existiam dois processos criminais contra ele.
“Pensei que era moca, porque os policiais têm essa mania de permanecer inventando coisas para pressionar as pessoas”, disse o porteiro de 30 anos em entrevista à Sucursal Brasil. Esses dois foram os primeiros processos de uma série de acusações injustas que ele teve que responder.
Ao todo, Carlos foi denunciado em cinco processos. Dois deles registravam crimes que ocorreram na mesma data e no mesmo horário, mas em locais diferentes. Em todos, o porteiro foi reconhecido por retrato, mesmo sem ter sido responsável pelos crimes. “Ninguém acreditava no que eu falava. Eu dizia que era singelo e as pessoas que não eram próximas desconfiavam. Até advogados que procurei na estação duvidavam”.
Situação semelhante foi vivida pelo educador social Danillo Felix Vicente de Oliveira, 29 anos. Em 2020, ele foi recluso no Núcleo de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, por policiais à paisana. Na 76ª Delegacia de Polícia, Danillo descobriu que foi assinalado porquê responsável de três assaltos na cidade.
Mesmo sendo singelo, o educador foi recluso por 55 dias e chegou a passar por três presídios nesse período. Liberado no dia do seu natalício, em 29 de setembro, ele relata que ainda precisou comparecer à delegacia na semana seguinte para um reconhecimento presencial: “Graças a Deus, a vítima alegou que não fui eu”.
“É uma coisa muito dura. Meu rebento aprendeu a caminhar e eu não vi. Perdi o Dia dos Pais, o natalício do meu pai, o da minha esposa, o meu natalício”, lamenta Danillo.
“A pessoa que não cometeu zero não tem que permanecer presa nem um dia, nem horas. Isso não existe, prender uma pessoa baseada exclusivamente em reconhecimento fotográfico. E a investigação? De saber da vida da pessoa, de saber se a pessoa estava lá ou não estava, de saber porquê estava a aspecto da pessoa no momento? Nem se preocupam com isso, de fazer minimamente o trabalho deles”, acrescentou.
Vítimas
Segundo relatórios produzidos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) e pelo Escola Pátrio de Defensores Públicos Gerais (Condege), entre 2012 e 2020 ocorreram 90 prisões injustas por reconhecimento fotográfico, sendo 73 na cidade do Rio de Janeiro. Do totalidade, 79 encarceramentos traziam informações sobre o perfil racial dos acusados, revelando que 81% deles eram pessoas negras, assim porquê Carlos e Danillo.
“O reconhecimento fotográfico está muito ligado a um projeto da justiça criminal das pessoas negras e precarizadas precisarem de pouco esforço para estarem vulneráveis. O poder punitivo age para prometer essas condenações de pessoas negras pegas em flagrante, mesmo sem ter elementos criminosos”, afirma a advogada criminal e coordenadora jurídica do Instituto de Resguardo da População Negra (IDPN), Maysa Carvalhal.
Para a advogada, o reconhecimento fotográfico é utilizado porquê uma punição antecipada pela Justiça para criminalizar a população negra e periférica. “Utilizam o reconhecimento fotográfico legítimo porquê uma instrumento muito eficiente para produzir condenações injustas.
No termo das contas, esse método entra porquê prova quase irrefutável se a vítima reconheceu o suspeito, ainda que tenha outros elementos de prova que contradigam”. Ela destaca que esse cenário tem provocado inúmeros erros judiciários, condenando, sobretudo, pessoas negras por crimes preferenciais do sistema de Justiça Criminal, caso de roubos e assaltos.
“Ninguém vê um jovem preto sendo injustiçado pelo Estado”, denuncia Carlos. “Meu mundo desabou. Na estação a minha ex-esposa estava prenhe, com o meu rebento para nascer. Se não fosse pelo IDPN, acho que eu não estaria mais cá contando essa história, porque tem diversas pessoas encarceradas lá que não tiveram o recta de se tutelar. Eu não sou o primeiro e nem serei o último, esse massacre do Estado acontece o tempo todo, não exclusivamente com prisões, mas também com as vidas ceifadas nas ruas”, afirma.
Quanto à identidade de gênero, a maioria dos acusados são homens jovens, segundo a também advogada criminal e doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federalista Fluminense (UFF), Juliana Sanches Ramos.
“São sempre homens negros vítimas desses reconhecimentos. Acredito que isso tem a ver com a questão de que as mulheres são principalmente encarceradas pelo delito de tráfico de drogas, enquanto os homens são os que mais são presos por crimes patrimoniais, justamente os delitos em que mais há o reconhecimento fotográfico”, analisa.
Reconhecimento
No Cláusula 226 do Código de Processo Penal é descrito porquê reconhecimento deve ser feito. O texto diz que uma pessoa que tiver que fazer o reconhecimento, seja ele presencial ou fotográfico, deve primeiro descrever ao supremo o verosímil culpado. Outrossim, é necessário que a pessoa que será reconhecida seja colocada ao lado de outras que compartilham de características físicas semelhantes.
A coordenadora jurídica do IDPN, Maysa Carvalhal, afirma, ainda, que pelo Código de Processo Penal tanto a pessoa que fará o reconhecimento quanto a que será reconhecida devem fazer a autodeclaração racial, “justamente porque as pesquisas já denunciam que existe uma atribuição da prática criminosa a pessoas negras. Isso faz com que quem está reconhecendo, se for uma pessoa branca, tenha mais inclinação para acusar a população negra”.
“Uma das indicações, quando alguém vai fazer o reconhecimento, é de que a testemunha dê as descrições mais precisas do suposto responsável do delito, mas o que normalmente vemos são características super genéricas. Normalmente, descrevem um varão preto, de aproximadamente 1,70m, bermuda e camiseta. Ou seja, pode ser qualquer varão preto, mas, quando você vai ver, são pessoas completamente diferentes”, complementa Ramos.
O trabalho da polícia é, basicamente, recolher coisas e pessoas para satisfazer com um sistema de metas, destaca o pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Gestão Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e professor do Departamento de Segurança Pública da UFF Pedro Heitor Barros Geraldo.
“A polícia pode prender quem ela quiser, desde que não seja uma pessoa branca”, defende. “É a polícia que reconhece quem ela deve prender, quem é mais fácil abordar e quem não tem entrada a direitos, cenário que tem relação com aspectos raciais, socioeconômicos e com o entrada à advocacia”, acrescenta.
O reconhecimento por foto tem ainda relação direta com o racismo algorítmico quando realizado com base em algoritmos.
Em entrevista à Sucursal Brasil, o doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federalista do ABC (UFABC) e responsável do livro Racismo Algorítmico: Lucidez sintético e discriminação nas redes digitais, Tarcízio Silva, esclarece que o concepção define o modo porquê sistemas de Lucidez Sintético (IA) ou similares podem aprofundar e ocultar determinadas desigualdades e opressões sociais, já que o funcionamento desses sistemas cria padrões de quem é suspeito ou não a partir de registros já existentes nos sistemas criminais, porquê as fotografias.
“As tecnologias de IA são baseadas no concepção de aprendizagem de máquina, em que os sistemas reproduzem modelos com base em dados históricos e boa secção deles representam desigualdades, opressões e violências. Portanto, quando o sistema é desenvolvido de modo a não levar isso em consideração, a tendência é o aprofundamento dessas desigualdades nos resultados”, explica. Para Silva, o reconhecimento fotográfico tradicional e o fundamentado em algoritmos possuem o mesmo problema: “São bases de dados construídas sem controle de qualidade, sem adequação a procedimentos de controle de supervisão que podem propiciar acusações injustas”.
Outrossim, há muitos casos em que as fotos dos possíveis suspeitos são retiradas das redes sociais e apresentadas às vítimas do delito, que estão passando por uma situação de estresse ou de traumatismo, segundo o pesquisador. Nesses casos, é esperado que a pessoa tenda à arguição, por toda dor enfrentada, desconsiderando características individuais ao calcular os supostos autores do delito e resumindo sua descrição à raça ou cor, o que favorece o racismo estrutural em casos em que os suspeitos apresentados são pessoas negras.
“Há muitos ativistas e pesquisadores que avaliam que o reconhecimento fotográfico ou presencial de uma verosímil pessoa acusada não pode ocorrer a menos que existam outras evidências”, avalia. O responsável reconhece ainda que o método utilizado por polícias pode gerar outros malefícios, porquê “uma hipervigilância e um contexto de suspeição generalizada, que pode prejudicar os níveis de privacidade e até facilitar a erosão da democracia por facilitar a perseguição de pessoas sem motivos válidos”.
Fotografias
A seletividade do sistema criminal está presente ainda na forma porquê as delegacias têm entrada às fotografias utilizadas no reconhecimento, principalmente em casos em que os denunciados não têm passagens criminais. Ramos explica que, em audiências, os policiais são sempre questionados sobre a origem da retrato utilizada porquê estratégia de resguardo, mas essas perguntas raramente são respondidas. “Em regra, a poder policial nunca consegue explicar porquê essas fotos chegam na delegacia e formam os ‘álbuns de suspeitos’ ou os bancos de dados com essas fotografias, até porque a maioria dos casos envolve pessoas primárias, de bons antecedentes, que nunca tiveram passagem pela polícia”.
No caso do educador social, por exemplo, a foto utilizada era de 2017, três anos antes da abordagem. “A minha fisionomia e o meu cabelo estavam totalmente diferentes. Eles também alegavam que o culpado era uma pessoa negra de pele clara e eu sou preto retinto, totalmente dissemelhante. Só quiseram mostrar mesmo um preto para satisfazer a função de recluso”. Apesar dos processos terem sido concluídos, Danillo conta que até o momento a sua retrato ainda não foi retirada do registro policial.
Procurada sobre porquê são obtidas as fotos dos acusados, sobretudo aqueles indiciados indevidamente, a Secretaria de Estado de Polícia Social (Sepol) informou à Sucursal Brasil exclusivamente que não orienta a utilização exclusivamente do reconhecimento por retrato porquê única prova nos inquéritos policiais ou para pedidos de prisão.
“O reconhecimento por fotografias, método aceito por lei, é um instrumento importante para o início de uma investigação, mas quando verosímil deve ser reforçado por outras provas técnicas e testemunhais, conforme prevê a Portaria Sepol que regulamenta a questão, estabelecendo protocolos para utilização e norteando o trabalho das unidades policiais”, disse.
Impactos
A arguição indevida afeta não exclusivamente a liberdade dos incriminados, mas também a rotina de pessoas inocentes processadas ou encarceradas por crimes que não cometeram. À Sucursal Brasil, Carlos compartilha que recentemente perdeu uma ótima proposta de trabalho em razão dos processos ligados ao seu nome. Também comenta que teve a sua saúde mental afetada e por um período precisou ser escoltado por uma psicóloga.
“Teve uma estação na minha vida em que fiquei muito aluído. Via a polícia na rua e trocava de passeio, porque tinha pavor de ser abordado de novo. Por onde andava, sempre mandava a localização e foto para alguém, para sempre estar provando onde eu estava. Na minha cabeça, achava que a qualquer hora a polícia ia chegar na porta da minha morada e me prender, mesmo sem eu ter feito zero”, destacou.
Com quatro dos cinco processos pelos quais foi denunciado encerrados, Carlos responde à última arguição escoltado pelo IDPN. Para a sua retrato ser apagada dos arquivos policiais, todas as absolvições são necessárias.
“Nesse momento mesmo alguém pode ter sido assaltado, estar na delegacia depondo, mostrarem a minha foto e a pessoa falar que possivelmente é esse o culpado e abrirem um novo processo contra mim. Tiveram conhecidos meus que foram assaltados, foram à delegacia prestar boletim de ocorrência e dentro do álbum de retrato mostraram uma foto minha. Uma situação constrangedora”.
Em 2022, o porteiro recebeu uma moção de louvor da Plenário Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) assinada pela deputada estadual Dani Monteiro (PSOL).
No texto, o documento reconhece a luta e a resistência do jovem “posteriormente ter sido vítima de uma prisão injusta pelo Estado do Rio de Janeiro, através do procedimento de Reconhecimento Fotográfico que há anos têm disposto vários inocentes em situação de privação da liberdade”.
No ano seguinte, em 2023, a Alerj também aprovou uma lei que impede que o reconhecimento fotográfico seja usado porquê única prova em pedidos de prisão.
Baseada na Solução do Recomendação Pátrio de Justiça (CNJ) 448/22, a medida determina diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas com objetivo de evitar a pena de inocentes.
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*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa
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