Mario Sergio Conti: Diário do Tirol – 29/11/2024 – Mario Sergio Conti
10 de novembro. Richard Wagner é difícil. Quem encena “O Ouro do Reno”, a primeira das quatro óperas da tetralogia “O Anel do Nibelungo”, tem de ter talento e intimidade com o teatro lírico. E quem quer assistir a ela precisa gastar os tubos para chegar a uma orquestra, um elenco e um maestro à altura da arte total de Wagner.
Então, foi um programa que se faz uma vez na vida e outra na morte: ver “O Ouro do Reno” no Teatro alla Scala, de Milão, a mais elevada das torres de marfim. Tudo foi fabuloso: a queda livre da música no despenhadeiro dos mitos; a lúgubre intensidade de cenários e figurinos; a magnitude do vozerio. Cada euro do ingresso valeu a pena.
Fechada a cortina, um uníssono de entusiasmo pôs a plateia de pé. Aí, no clímax da consagração, chamaram ao palco Christa Mayer, a contralto que fez o papel de Erda. Má ideia. Uma vaia bombástica abalou o Scala. Os “bravo!” vibrantes deram lugar a dós de peito wagnerianos: “Vergogna!”. Nunca vi nada igual. Nem no Parque Antarctica.
Perguntei ao vizinho de frisa o que acontecera. “Não gostaram dela”, respondeu. Na calçada do teatro, um grupinho de cabeças brancas detalhou: a moça cantara baixo, e muito mal —algo que os brasileiros nem notaram os milaneses não perdoaram.
Dia 12 de novembro. A menina de 16 anos e o moço de 18 se abraçam no Museu Arqueológico de Mântua. São os Amantes de Valdaro, o lugarejo onde foram achados, em 2007. Eles estão enlaçados desde o Neolítico, há 6.000 anos, quando foram enterrados juntos. O casal de esqueletos dá um choque de ternura, traz à mente o último verso de “Um Túmulo de Arundel”, de Philip Larkin: “O amor nos sobreviverá”.
Dia 14 de novembro. O amor sobrevive também na sala de banquetes do Palazzo Te. O marquês de Mântua encomendou os afrescos do edifício a Giulio Romano, o pupilo predileto de Rafael. Artista à margem do cânone, tido por pornógrafo pelo papa Clemente 7º, Romano pintou a cena que hipnotiza quem visita o Palazzo, “Júpiter seduz Olímpia”.
Lânguida, Olímpia acolhe entre as coxas a vistosa ereção de Júpiter, que, meio disfarçado de serpente, acaricia seu o rosto. São espiados por Felipe 2º, rei da Macedônia e marido de Olímpia —ou seja, além de voyeur, corno. Júpiter manda uma águia furar-lhe os olhos.
Desde o século 16 fofoqueiros espalham que Júpiter tem as feições do marquês de Mântua; e Olímpia é idêntica à sua amante. Vai saber.
Dia 15 de novembro. Do outro lado da fronteira, no Tirol austríaco, fica a minúscula Längenfeld, onde em 1830 acharam uma fonte de água quente. Ela pertence agora ao Aqua Dome, um balneário termal com saunas, duchas e piscinas de todo tipo: ferventes, salinas, gélidas, rochosas ou ladrilhadas.
Uma piscina inesquecível repousa no berço esplêndido de um pequeno vale entre os Alpes e as Dolomitas. Miniluzes cravejam seu fundo anil, são diamantes a espelhar as estrelas no veludo negro do céu. O corpo entorpece, periga se dissolver no cálido aconchego de um útero côncavo.
As saunas —a vapor, finlandesas ou de pedra— são mistas, e na maioria a nudez é obrigatória. Enquanto a diversidade dos corpos é infinita, seu apelo erótico é nulo. Não fiquei pelado porque tive, como se diz no Scala, vergonha.
Dia 17 de novembro. Outra ópera, dessa vez em Innsbruck: “Falstaff”, a última de Giuseppe Verdi. O libreto é um remendo de cenas das peças de Shakespeare em que o obeso e rabugento John Falstaff gargalha e importuna, enche o caco e pisa na jaca, agoniza, estrebucha e morre fora de cena.
É a única ópera cômica de Verdi, mas não tem graça. Falstaff, lépido e furta-cor, ficou fosco, claudica. Em compensação, a música é agradável —e convencional. Os aplausos foram protocolares e ninguém urrou “Schande!” (vergonha em alemão, acho).
Dia 18 de novembro. Vejo em Trento “La Grande Ambizione”, filme de ficção que enaltece Enrico Berlinguer, secretário-geral do Partido Comunista Italiano nos anos 1970. Foi quando defendeu o “compromisso histórico”, a aliança do PCI com a direita palatável para mudar a Itália a fundo.
O malogro do PCI e Berlinguer foi total, constatação que o filme evita. Prefere cultivar a nostalgia a enfrentar a realidade, mesmo que passada. É por isso que só havia velhos no cinema.
No Brasil, a esquerda não é nostálgica porque o compromisso histórico está em vigor. O PT se aliou à direita dita civilizada para reformar a nação —que contudo continua atolada na pobreza e na exploração. Ao sair do cinema, o sol se põe e o Brasil entristece a noite que cai sobre Trento.
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