O roteiro do dia em que, segundo a PF, Bolsonaro decretaria um golpe
A data mais citada nas 884 páginas do relatório da Polícia Federal referente ao inquérito da suposta trama golpista desencadeada após as últimas eleições presidenciais é o dia 15 de dezembro de 2022. Com 90 menções, no total, a data é apontada como o “ápice” do planejamento, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), segundo as investigações, assinaria a “minuta do golpe”. Ele nega ter considerado uma ruptura institucional.
O texto do relatório elenca uma série de acontecimentos nesse dia. Além da expectativa em torno de uma resposta que seria dada pelo então comandante do Exército, demonstrada em trocas de mensagens, o inquérito evidencia, ainda, o monitoramento, com intenção de sequestro, do ministro Alexandre de Moraes, e as visitas recebidas por Bolsonaro no Palácio da Alvorada.
O dia começou com a notícia de uma megaoperação da PF, autorizada por Moraes, contra apoiadores do ex-presidente suspeitos de organizar atos antidemocráticos contra o resultado das urnas. O clima nos acampamentos bolsonaristas em frente a quarteis país afora era de tensão. Ao todo, mais de 100 mandados, entre ordens de prisão e de busca e apreensão, foram cumpridos em oito estados e no Distrito Federal.
Recluso no Alvorada, Bolsonaro teve uma agenda cheia de reuniões e articulações naquela quinta-feira. Os registros da portaria mostram que, antes das 9h, deram entrada no local um dos filhos dele, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o ex-assessor especial da presidência Filipe Martins, e o general Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa derrotada do presidente em 2022.
Flávio e Braga Netto deixaram a residência presidencial antes das 10h, enquanto Filipe Martins, apontado pela PF como um dos integrantes do núcleo jurídico do plano, por supostamente assessorar na elaboração da minuta golpista, permaneceu o dia todo no local. A entrada dele ocorreu às 8h30 e a saída às 20h30, conforme os dados registrados.
Reunião com o comandante do Exército
Uma das grandes expectativas do dia girava em torno da reunião que Bolsonaro teria com o então comandante do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes. Alvo de uma verdadeira campanha de pressão e ataques virtuais nos dias anteriores para que aderisse ao plano golpista, o militar deu entrada no Alvorada para se reunir com o presidente às 10h45.
Trocas de mensagens entre assessores do governo, capturadas pela PF, revelam a ansiedade em torno desse encontro. Às 12h19, o então secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, general Mario Fernandes, encaminhou um áudio para o general Luiz Eduardo Ramos, secretário-executivo da presidência da República.
“Kid preto, algumas fontes sinalizaram que o comandante da Força sinalizaria hoje, foi ao Alvorada para sinalizar ao presidente que ele podia dar ordem”, indica a transcrição do áudio de Mario Fernandes.
Veja:
Freire Gomes ficou no Alvorada até 12h do dia 15 de dezembro de 2022. A resposta dada por ele ao presidente, no entanto, segundo a investigação, frustrou os planos de quem esperava por uma sinalização positiva do chefe do Exército. A maioria dos integrantes do alto comando da Força havia se posicionado contra a adesão ao plano golpista, indica a investigação.
Ataques: “Freire Gomes será devidamente implodido”
A notícia da negativa de Freire Gomes rapidamente se espalhou entre integrantes do governo, intensificando a movimentação no Alvorada. Seis minutos após a saída do comandante do Exército, o general Luiz Eduardo Ramos deu entrada no local. Às 14h24, chegaram Anderson Torres, então ministro da Justiça, e, novamente, Braga Netto.
Não demorou muito para começarem os ataques ao comandante do Exército no WhatsApp. Às 14h58, enquanto estava no Alvorada, Braga Netto recebeu a seguinte mensagem de texto do capitão reformado Ailton Gonçalves Moraes Barros: “Se FG [Freire Gomes] tiver fora mesmo, será devidamente implodido e conhecerá o inferno astral”.
O capitão reformado, segundo a PF, teria recebido ordens de Braga Netto para promover ataques ao comandante. Mensagens do dia 14 de dezembro de 2022, um dia antes, demonstram isso. “A culpa pelo o que está acontecendo e acontecerá é do Gen. Freire Gomes. (…) Oferece (sic) a cabeça dele. Cagão”, escreveu o ex-ministro. Veja:
Monitoramento de Alexandre de Moraes
Paralelo e em complemento a tudo isso, ocorria, segundo a PF, uma outra parte do plano, direcionada ao monitoramento e possível sequestro e assassinato de autoridades. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seria o grande alvo do dia.
Visto pelos articuladores do plano golpista como o “centro de gravidade” a ser controlado e extinto, Moraes foi monitorado por militares das forças especiais (“kids pretos”) entre novembro e dezembro de 2022 – indica o inquérito. O caso veio à tona recentemente, com a deflagração da Operação Contragolpe, no dia 19 de novembro deste ano, que resultou na prisão de quatro militares e um policial federal.
Em 15 de dezembro de 2022, integrantes da missão que seria denominada “Copa 2022” saíram de Goiânia (GO), onde fica o Comando de Operações Especiais (Copesp) do Exército, com destino a Brasília para, supostamente, colocar o plano em prática. Todo o trajeto na estrada e a movimentação na capital federal, de veículos e celulares vinculados aos envolvidos, foram identificados pela investigação da PF.
Os suspeitos ficaram em locais estratégicos, como as imediações do STF e do endereço residencial de Moraes, na Asa Sul. Eles aguardavam pela autorização superior, que, segundo a PF, seria: “cumprir a ordem que seria emanada para prisão/execução [do ministro do STF], caso o decreto de golpe de Estado fosse assinado pelo então presidente da república Jair Bolsonaro no dia 15/12/2022”.
Frustração do plano: “Abortar”
Às 20h59, no entanto, o plano foi frustrado. Os envolvidos na missão utilizaram codinomes de países para não serem identificados (Alemanha, Argentina, Áustria, Brasil, Japão e Gana). Nesse horário, “Alemanha” enviou a ordem pelo grupo no aplicativo de mensagens Signal: “Abortar”. A PF aponta, no relatório, que a falta de adesão do Alto Comando do Exército ao intento golpista evitou o prosseguimento da missão.
Logo depois, às 21h05, um dos “kids pretos” que integrava o grupo, o major Rafael Martins de Oliveira, entrou em contato com o então ajudante de ordens da Presidência da República, tenente-coronel Mauro Cid. “Apesar de estar na cidade de São Paulo (SP) naquele dia, os elementos indicam que Mauro Cid estava recebendo informações sobre a ação clandestina”, afirma a PF.
No mesmo horário desses últimos acontecimentos, o único ministro que ainda estava no Alvorada era Anderson Torres, apontado pela investigação como um dos integrantes do núcleo jurídico do plano de golpe por atuar na elaboração das minutas golpistas. O esboço, inclusive, foi encontrado na casa dele em janeiro de 2023. Torres chegou ao palácio, pela segunda vez no dia, às 19h58 e ficou até 21h19.
O dia seguinte
O planejamento previa, caso a minuta fosse assinada, a criação de um Gabinete Institucional de Gestão da Crise, que, segundo a PF a partir dos documentos apreendidos, seria instituído no dia seguinte, 16 de dezembro de 2022, pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. O coordenador-geral seria o general Braga Netto e o chefe de gabinete, o general Augusto Heleno.
Os militares que participaram da missão “Copa 2022” ficaram em Brasília até o fim da noite do dia 15 de dezembro. Conforme os registros, na estrada, um dos veículos retornou para Goiânia por volta das 22h, passando pelos pedágios às 22h44 e 00h29. O sequestro de Moraes, de acordo com a PF, fazia parte de um plano ainda maior, chamado “Punhal Verde e Amarelo”.
“O planejamento operacional previu o assassinato do então presidente da república eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, por envenenamento, e do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, com a finalidade de extinguir a chapa vencedora das eleições presidenciais de 2022”, aponta o relatório da PF.
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