Para especialistas, Enel não deve deixar contrato de SP – 23/10/2024 – Cotidiano

Advogados, gestores e analistas do mercado financeiro, especializados no setor de energia, ainda não visualizam mudanças drásticas na concessão de distribuição em São Paulo. A percepção geral é que são remotas as chances de a Enel sair por conta própria ou a União conseguir tomar a concessão seguindo os ritos regulatório e contratual. Para levar adiante o fim da concessão, o governo vai precisar ter fortes argumentos técnicos e ser muito cauteloso para não elevar a percepção de aumento de risco regulatório no Brasil.

Nesta segunda-feira (21), a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) intimou a Enel argumentando que houve “descumprimento do plano de contingência” acertado para reestabelecer a energia em caso de evento climático extremo, ocorrendo, assim, “reincidência quanto ao atendimento insatisfatório aos consumidores”. Segundo a agência, a intimação integra o relatório de falhas e transgressões que inicia processo para avaliação de recomendação de caducidade”.

A caducidade é uma medida extrema, para ser aplicada quando há clara demonstração de que a empresa é incapaz de fornecer o serviço dentro do acertado em contrato. Mesmo estabelecida na regulação, nunca foi adotada no Brasil. O contrato prevê que deve ser precedida de processo administrativo para a verificação das infrações, e a concessionária terá amplo direito de defesa e garantia de que será indenizada pelos investimentos que fez, caso perca a concessão.

Não é um caso trivial. O grupo Enel é considerado um colosso na área de energia e esta presente em 28 países. A operação local, que inclui negócios de geração (hidrelétrica, solar e eólica) e distribuidoras em São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará, confere ao Brasil uma participação relevante nos resultados da companhia em nível internacional.

Os dados disponíveis em balanço mostram que, no primeiro semestre deste ano, em relação ao resultado do grupo no mundo, a operação no Brasil representou 23% da base de clientes, 13% dos investimentos e contribuiu com quase 10% do Ebtida (sigla em inglês para Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation, and Amortization, indicador que mostra qual foi o lucro de uma empresa antes de descontar juros, impostos, depreciação e amortização).

Quando se avalia o país em relação ao continente, o peso é ainda maior. Na Enel Americas, o Brasil respondeu por 71% da base de clientes, 74% dos investimentos e 58% do Ebtida.

Profissionais do mercado financeiro que preferem não ter o nome citado na reportagem afirmam que, diante desses resultados, não conseguem ver interesse da Enel em sair da concessão em São Paulo, uma espécie de mercado premium na região.

Há outro componente para sustentar essa análise: a Enel nasceu e cresceu como uma estatal. Abriu o capital no final dos anos de 1990, mas o Estado mantém 23,6% das ações e boa dose de influência na companhia. Seus movimentos são qualificados como menos agressivos que uma companhia privada —se a situação financeira é estável, costuma evitar mexidas.

No ano passado, ela vendeu operações no Peru e amealhou quase US$ 3 bilhões (R$ 17 bilhões, na cotação atual). Com o caixa mais robusto, interrompeu a prospecção, então em curso, para a venda da Enel Ceará. Analistas não enxergam razão financeira para venda de ativos na região.

Não faltariam empresas interessadas em atender as quase 8 milhões de unidades consumidoras dos 24 municípios da região metropolitana de São Paulo que estão sob a gestão da Enel. No entanto, segundo analistas, entre as companhias de capital aberto que atuam no Brasil, com resultados financeiros disponíveis, apenas a CPFL teria bala na agulha e capacidade operacional para assumir um negócio desse porte.

Apesar do movimento da Aneel, especialistas não veem espaço regulatório para o governo tirar a concessão. No contrato da empresa, que reflete o previsto na Lei de Concessões, há cinco alternativas para encerramento do acordo (leia abaixo).

A chance de a empresa desistir da concessão é tratada como muito remota. Ainda assim, caso isso ocorra, não é prevista uma multa no contrato entre Enel e governo, e seria preciso definir uma forma de compensação. O que se avalia é que o governo ainda teria de ressarcir a empresa pelos investimentos realizados nos ativos da concessão.

Advogados ouvidos pela Folha reforçam que, pelos critérios atuais, a Enel SP cumpre os indicadores de qualidade que medem tempo no escuro e frequência de quedas de luz —tecnicamente, DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora).

No ranking que mede a qualidade geral dos serviços, com 29 empresas, a Enel SP não tem uma posição de destaque. Esta em 21º lugar. No entanto, está melhor que Copel, no Paraná, e Cemig, de Minas Gerais, por exemplo, e sem avaliações negativas, caso da gaúcha CEEE e da Equatorial GO.

É uma situação diferente da que a empresa viveu em Goiás. Naquele estado, a Enel sofreu forte pressão local e optou por vender a concessão quando estava descumprindo essas métricas.

A avaliação é que, para tirar a concessão da Enel em São Paulo, regulador e governo teriam que aplicar uma interpretação desfavorável e ampla ao artigo 20 da resolução normativa 846/2019, que trata da caducidade. No entanto, a percepção geral é que, se seguir por esse caminho, a Aneel e o governo terão de assumir efeitos colaterais imprevisíveis, como elevar a percepção de risco político no setor.

Ficaria mais difícil ainda o governo federal justificar a caducidade da Enel SP neste momento porque o processo levaria automaticamente a uma comparação com outro imbróglio em curso no setor, envolvendo a Amazonas Energia.

Essa distribuidora não tem condição financeira para operar e, há quase um ano, a Aneel defende a aplicação da caducidade. O governo, no entanto, rejeita a ideia e trabalha para transferir a concessão. Chegou a editar uma MP flexibilizando obrigações da Amazonas Energia e transferindo parte seus custos para a conta de luz dos brasileiros para facilitar a entrada de uma nova empresa.

Procurada pela reportagem para indicar se avalia pleitear a prorrogação da concessão em São Paulo ou prefere transferi-la, dado o atual ambiente político, a Enel Brasil afirmou que apresentou ao governo brasileiro um plano de investimento de 2024 a 2026 de R$ 20 bilhões (US$ 3,7 bilhões) —80% destinado à distribuição— e que esse plano demonstra o compromisso do grupo com a concessão.

COMO A ENEL PODE SAIR DE SP

Segundo o contrato, que segue a Lei de Concessões, a exploração do serviço de distribuição em São Paulo pode ser extinta:

  1. pelo advento do termo final do contrato; ou seja, acabou prazo e não houve renovação
  2. pela encampação do serviço; em outras palavras, o poder concedente declara interesse público e assume o serviço
  3. pela caducidade; aplicação de penalidade em que a empresa perde a concessão quando não cumpre o serviço
  4. pela rescisão; quando a empresa pede para sair, porque faz tudo certo, mas o poder concedente não cumpre a sua parte
  5. pela anulação decorrente de vício ou irregularidade constatados no procedimento ou no ato de sua outorga; em resuma, quando ocorre alguma irregularidade na licitação ou na contratação do serviço
  6. em caso de falência ou extinção da concessionária; em outras palavras, se a empresa quebrar



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