quando a privatização é incompatível com a dignidade humana – Frente Ampla – CartaCapital

Um dos motivos pelo qual a privatização de serviços públicos estratégicos ou essenciais tende a ser problemática é que a busca do lucro permanente não é – e não deve ser – um dos princípios norteadores da Administração Pública, a quem cabe, em último grau, a prestação do serviço à população.

Não é tarefa simples combinar os princípios do Direito Administrativo, aqueles do Art. 37 da Constituição Federal – Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência –, com a lógica da iniciativa privada, que é motivada principalmente pela maximização dos lucros. Muito menos garantir a observância de conceitos abertos como a dignidade da pessoa humana, um fundamento sobre o qual se assentam os direitos fundamentais e os direitos sociais inscritos na Carta Magna.

Digo isso porque, na semana passada, a pedido do meu mandato, o Partido Comunista do Brasil impetrou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal para discutir a constitucionalidade de dispositivos das Leis Municipais 17.180/2019 e 16.703/2017, que autorizaram concessões de serviços, dentre eles a privatização do serviço funerário em São Paulo, por ofenderem cruelmente o princípio da dignidade da pessoa humana no momento mais duro para qualquer família, quando esta vai enterrar um ente querido.

A ADPF, que tive a alegria ser minha primeira peça assinada como advogado, traz dezenas de reportagens, todas recentes, de abusos intoleráveis das empresas concessionárias contra as famílias enlutadas. Em um dos casos mais revoltantes, é feita a cobrança de 12 mil reais para o sepultamento de um bebê recém-nascido.

Por isso, fizemos questões de demonstrar que os princípios constitucionais têm força normativa, não são meras indicações genéricas, e devem ser esgrimados juridicamente para defender direitos violados. Nesse caso é patente: “a ofensa ao princípio fundante da República Federativa do Brasil – dignidade da pessoa humana – inscrita no inciso III, art.1º da C.F., reside justamente na hiper exploração comercial no momento de maior fragilidade emocional dos cidadãos e das cidadãs, impondo às famílias enlutadas, sofrimento extra à perda do ente querido, reduzindo a dimensão da vida e da dignidade humana a uma expressão monetária vil”, diz a peça.

O ministro Flávio Dino acolheu parcialmente os pedidos e determinou que as empresas concessionárias voltassem a praticar, no máximo, os preços anteriores ao processo de privatização, corrigidos pela inflação. De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, os preços poderiam cair em até 80% em certos casos.

“Vê-se que, apesar da privatização dos serviços funerários, cemiteriais e de cremação ter na sua origem uma ideia de modernização da prestação pública, o caminho trilhado até agora possui fortes indícios de geração sistêmica de graves violações a diversos preceitos fundamentais, entre os quais, a dignidade da pessoa humana, a obrigatoriedade de manutenção de serviço público adequado e plenamente acessível às famílias”, resumiu o ministro em sua liminar.

Lembro-me de um livro que fez sucesso nos idos de 1999/2000 chamado O Brasil Privatizado, do grande e saudoso jornalista Aloysio Biondi, que tratava das desestatizações nos governos Fernando Henrique Cardoso, trazia casos de empresas públicas vendidas com fortunas em caixa e debatia conceitualmente o papel das estatais na execução dos serviços e do interesse público.

Por exemplo, a grande mídia sempre fazia escândalo para apontar déficits nas empresas de energia e telefonia, quando eram públicas, mas omitia que boa parte da conta era para atender o interesse público e subsidiar o acesso da população mais pobre através de tarifas subsidiadas. O contexto era outro e a natureza dos serviços também, mas o debate é pertinente, porque não se pode balizar a lógica do interesse público, garantia do serviço universal e acessível à população, pela do privado, que é lucro e dinheiro em caixa.

Como não podia deixar de ser, no caso do serviço funerário, a grita da prefeitura, das empresas e da grande mídia tem sido grande, posto que, no limite, na análise de mérito, o debate pode resvalar naquilo que virou um cânone para os ultraliberais: o questionamento à absolutização das privatizações.

Uma discussão séria, verdadeira, sobre a impertinência e a inviabilidade de privatização de determinados serviços públicos, simplesmente porque há uma irremediável oposição entre a lógica do lucro a todo custo e a garantia de certos princípios constitucionais e direitos fundamentais, é bem-vinda e urgente para a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.



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