Tive um transe amazônico sem nenhuma substância alucinatória
Uma vez subi o Rio Negro em desagravo por uma ofensa recebida. Comigo sempre deu certo: quando a afronta é muito grande, dou um jeito de pegar a estrada, qualquer uma, na terra, no céu ou na água. Essa foi no outubro de cinco anos atrás. A estiagem do rio ainda não era tão calamitosa, contentava-se em revelar belezas. O nível das águas descia a um metro, metro e meio, e deixava no ar as raízes das árvores, na encosta do rio. Foi então que aconteceu algo na fronteira entre o real e o irreal: a trama de troncos antes submersos e agora visíveis me deixou num estado de transe que guardo comigo como quem leva um crucifico no peito.
O barco subia o rio de Manaus a São Gabriel da Cachoeira, no extremo noroeste do Amazonas, bem na Cabeça do Cachorro, quase na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, mil quilômetros de água. Foi a viagem mais cabocla e indígena de todas as que já fiz – e já fiz umas dez, a primeira delas com pouco mais de um mês de idade, saindo de Manaus, onde nasci, para Belém, onde me criei. Dessa vez, 60 anos depois, subi o Negro até quase o fim do Brasil.
No convés entremeado de redes, uma mistura de peles amorenadas, cabelos lisos, rostos meio asiáticos, mulheres caboclas com correntes e brincos de ouro, e toalhinhas sempre à mão para secar o suor, uma gente silenciosa, capaz de passar quatro dias e quatro noites deitada da rede, alguns poucos com celular sem sinal, ouvindo apenas o popopó do motor do barco.
Quem não estava na rede, estava nos bancos compridos de madeira, de frente para as margens do Negro. Nos locais de rio mais estreito, dava para ver o lado de dentro da floresta, emaranhado de folhas, galhos e troncos caídos. Porém, eram as bordas da selva, a teia de raízes surgindo da queda do nível das águas, que me levaram a um transe que durou não sei quanto tempo – uma hora, duas?.
Sentada no banco de madeira, não eram raízes o que eu via. Eram seres imaginários porém extremamente reais. Eram como animes parados, uma sucessão ininterrupta de bonequinhos feitos do fundo das árvores, em formatos e tamanhos diferentes, porém todos em pares, em pé, abraçados, deitados, misturados. Eu não estava sob o efeito de nenhuma substância química. Era outra a natureza da coisa que me tomava, a mesma que tinha me levado a subir o rio. Para não sucumbir ao ressentimento do amor, intuitivamente decidi voltar às águas que me criaram.
Trazia comigo, além da rede e de uma mochila, o A queda do céu, o clássico de Davi Kopenawa e Bruce Albert (Companhia das Letras, 2015). Nele, Kopenawa descreve longamente as extremas experiências extrassensoriais pelas quais teve de passar até alcançar a condição de um xamã Yanomami. A mim, neta de indígena e preto, o que aconteceu me pareceu uma alucinação, um sonho sonhado de olhos abertos.
Dois dias depois, desci o rio de volta a Manaus. As raízes estavam lá, mas os bichinhos oníricos haviam indo embora. Nunca antes, nunca depois, vi nada minimamente parecido com aquela multidão de amazônicos amantes.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.
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