‘Vacina’ contra aids: por que Brasil ficou de fora em distribuição do Lenacapavir
O lenacapavir, um remédio injetável tomado a cada seis meses como medida profilática contra o HIV, foi eleito o avanço científico de 2024 pela revista acadêmica Science.
Os resultados que avaliaram a estratégia, publicados em julho e setembro deste ano, mostraram uma taxa de eficácia que beira os 100% — e foram consideradas por entidades e especialistas um divisor de águas na prevenção ao vírus causador da aids.
Alguns pesquisadores consideram que a novidade é o mais próximo que chegamos de uma vacina contra essa infecção.
A medicação só deve estar disponível a partir de 2026, mas os debates sobre quem terá acesso a ela já estão a todo vapor.
Isso porque a farmacêutica responsável pela inovação fez um acordo de licenciamento com seis laboratórios, para garantir a produção de uma versão genérica de baixo custo do lenacapavir, que será distribuída para os 120 países mais pobres do globo.
No entanto, nações consideradas de renda média — como o Brasil e boa parcela da América Latina, onde parte dos estudos clínicos do fármaco foram realizados — ficaram fora dessa lista.
Com isso, há um temor de que os programas de saúde pública desses países não terão condições financeiras de custear o lenacapavir para quem mais precisa.
Para ter ideia, pesquisadores ingleses, alemães e americanos estimam que as duas doses anuais custem, por paciente, algo entre US$ 25.395 e 44.918 (ao redor de R$ 153 mil e 271 mil, na cotação atual).
Mas, segundo o mesmo grupo internacional de especialistas, é possível reduzir esse preço para menos de US$ 100 (R$ 600) por paciente por ano com compras de insumo em larga escala e produção em massa das doses.
Entenda a seguir como está essa discussão e quais são os caminhos possíveis para ampliar o acesso à futura ‘vacina’ da aids no Brasil e no mundo.
O que é o lenacapavir
A partir de meados de 2010, começaram a surgir os primeiros trabalhos e iniciativas de implementação de medidas biomédicas preventivas contra o HIV.
Basicamente, a ideia consiste em oferecer a pessoas não infectadas um remédio de forma profilática, justamente para impedir que o vírus invada o organismo.
Eles podem ser uma boa ideia para resguardar indivíduos de grupos considerados como populações-chave (gays e outros homens que fazem sexo com homens; pessoas trans; pessoas que usam álcool e outras drogas; pessoas privadas de liberdade e trabalhadores do sexo) e populações prioritárias (adolescentes e jovens; negros; indígenas; indivíduos em situação de rua).
A Prep disponível hoje, inclusive no sistema público brasileiro, é feita a partir de comprimidos, que devem ser tomados todos os dias.
Ela tem uma alta taxa de eficácia, mas apresenta um problema importante: depende da memória e da iniciativa do próprio indivíduo.
Se a pessoa se esquecer de tomar o remédio, ela fica sob risco de se infectar com o HIV (caso não faça uso de outras medidas preventivas, como os preservativos, por exemplo).
Para lidar com essa fragilidade, os cientistas desenvolveram versões injetáveis e de longa duração da Prep.
A primeira versão foi o cabotegravir, que precisa ser tomado de dois em dois meses (e deve chegar no Brasil a partir do ano que vem).
Mas ele ainda apresenta algumas barreiras importantes, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Essa Prep demanda uma injeção mais profunda nos glúteos, que pode ser um tanto incômoda ou até contraindicada para pessoas com próteses de silicone nessa parte do corpo.
Na sequência, veio o lenacapavir, que foi eleito a inovação científica de 2024.
Como mencionado anteriormente, ele é aplicado uma vez a cada seis meses e por via subcutânea (nas camadas mais superficiais da pele).
O médico Alexandre Naime Barbosa, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBInfecto), explica que este fármaco inibe o capsídeo, proteína que forma uma das estruturas do HIV.
“Ele consegue atrapalhar o funcionamento desse capsídeo, que é uma espécie de caixinha que envolve o material genético do vírus”, diz o especialista, que também é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“O lenacapavir não deixa que essa caixinha seja formada. Com isso, o vírus não consegue infectar novos linfócitos T CD4, que são as células-alvo do HIV no organismo”, complementa ele.
Ao quebrar esse mecanismo, portanto, a infecção não acontece. Daí o vírus não consegue se replicar e “se esconder” em partes específicas do corpo.
“O lenacapavir foi projetado para ter uma liberação lenta. Ele forma um depósito no tecido gorduroso, geralmente no abdômen, e o medicamento é disponibilizado para o organismo aos poucos, ao longo de seis meses”, explica Barbosa.
A eficácia do lenacapavir
O médico sanitarista e epidemiologista Draurio Barreira, diretor do Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde, conta que participa de conferências sobre aids desde os anos 1990.
“E dois desses congressos foram muito marcantes pra mim. O primeiro aconteceu em 1996, em Vancouver, no Canadá, quando surgiu o coquetel antirretroviral”, lembra ele.
“O segundo foi a Conferência Internacional sobre Aids de 2024, realizada em julho na cidade de Munique, na Alemanha”, complementa o especialista.
Na edição deste ano, foram divulgados justamente os resultados de um dos estudos que avaliou o lenacapavir, desenvolvido pela farmacêutica Gilead Sciences.
Apelidada de Purpose-1, essa pesquisa acompanhou 5.300 mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero designado a elas quando nasceram) de 16 a 25 anos na África do Sul e em Uganda.
Parte do grupo adotou a Prep convencional, por comprimidos, enquanto outra parcela tomou a versão injetável.
Entre as voluntárias que receberam o lenacapavir, nenhuma se infectou com o HIV.
Essa eficácia, de 100%, é algo bastante raro em estudos clínicos — é a primeira vez que isso acontece nos testes relacionados ao vírus causador da aids, por exemplo.
Já no grupo da Prep por comprimidos, 55 mulheres se infectaram com o HIV.
A diferença entre as estratégias foi tão significativa que o comitê independente responsável por monitorar a pesquisa recomendou que o trabalho fosse interrompido — e todas as participantes passassem a receber o lenacapavir dali em diante.
Poucos meses depois, em setembro, foram divulgados os resultados preliminares do estudo Purpose-2, que avaliou 3.267 voluntários.
Entre os participantes, foram selecionados homens cisgênero, homens transgênero, mulheres transgênero e indivíduos não binários com mais de 16 anos cujos parceiros sexuais foram classificados como do sexo masculino no momento que nasceram.
Essa pesquisa foi conduzida em Argentina, Brasil, México, Peru, África do Sul, Tailândia e Estados Unidos.
Assim como aconteceu no Purpose 1, aqui os indivíduos foram divididos em grupos (parte recebeu Prep oral; parte tomou lenacapavir).
Os dados revelaram uma redução de 96% no risco de adquirir HIV entre indivíduos que fizeram a Prep injetável.
Apenas dois voluntários que tomaram o lenacapavir se infectaram — o que significa que 99,9% dos participantes ficaram protegidos.
Esses números foram celebrados por especialistas e instituições.
Em texto publicado em julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deu as “boas-vindas, com satisfação”, à notícia de que o lenacapavir é “altamente eficaz”.
“Isso representa um avanço significativo na prevenção do HIV”, afirmou a entidade.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) classificou os resultados como um “desenvolvimento emocionante”, que dá “esperança para acelerar os esforços de acabar com a pandemia”.
Já a revista acadêmica Science deu ao lenacapavir o prêmio de avanço científico do ano.
“A premiação também reconhece o trabalho relacionado ao tema, que permitiu um novo entendimento sobre a estrutura e a função do capsídeo do HIV”, diz a publicação.
“Apesar de décadas de avanços, o HIV continua a infectar mais de um milhão de pessoas por ano […] No entanto, um novo medicamento injetável, o lenacapavir, oferece esperança ao fornecer seis meses de proteção por meio de uma injeção”, destaca um editorial da Science.
Barreira esclarece que o lenacapavir não é exatamente uma vacina — ele não estimula e “ensina” o sistema imunológico a evitar uma infecção, como fazem os imunizantes tradicionais.
Trata-se de um remédio que, como explicado mais acima, atua numa das estruturas do vírus para impedir a replicação dele.
“Por outro lado, nosso próprio conceito de vacina vem se transformando, especialmente a partir da pandemia de covid-19”, raciocina ele.
“Quando surge uma medida profilática, como a Prep injetável semestral, não estamos de fato diante de uma vacina, embora em termos práticos e programáticos sejam coisas similares.”
“Então nós podemos trabalhar na perspectiva de ter uma ‘vacina’ contra a aids, ainda que esse termo precise ser usado entre aspas”, opina Barreira.
A expectativa é que o lenacapavir seja submetido à avaliação das agências regulatórias (como Anvisa no Brasil, FDA nos Estados Unidos e EMA na Europa) e esteja liberado para uso em larga escala a partir de 2026.
Quem vai conseguir tomar?
As mesmas análises que comemoraram a chegada da Prep semestral também alertaram para o risco de desigualdade no acesso à medida preventiva.
Autoridades e instituições logo manifestaram preocupação sobre como garantir que as pessoas, especialmente as mais pobres e vulneráveis, recebam o lenacapavir.
Na prática, esses fabricantes (localizados no Egito, no Paquistão, na Índia e nos Estados Unidos) terão o direito de produzir versões genéricas do lenacapavir, que serão vendidas a baixo custo para 120 países considerados de renda baixa ou média-baixa.
“Os acordos promovem a estratégia da Gilead para permitir acesso amplo e sustentável ao lenacapavir para Prep globalmente, se for aprovado, e se alinham com a visão da Gilead de acabar com a epidemia de HIV para todos, em todos os lugares”, afirmou o laboratório.
No entanto, países de renda média — como o Brasil e boa parte da América Latina — ficaram de fora desse acordo.
Isso significa, portanto, que essas nações precisarão negociar e comprar as doses diretamente com a farmacêutica que detém a patente.
Com o anúncio, especialistas e instituições lançaram novos protestos.
Já o Escritório Regional da Unaids para a América Latina e o Caribe destacou que o acordo feito pela farmacêutica “não é suficiente” porque “continua não incluindo milhões de pessoas vulneráveis e mais expostas ao risco”.
O texto divulgado pela entidade destaca a exclusão de muitos países de renda média, dez deles na América Latina: Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Paraguai e Peru.
“Entre as 2.184 pessoas participantes que foram aleatoriamente designadas para receber lenacapavir subcutâneo a cada seis meses como parte dos ensaios estavam gays, bissexuais e outros homens que fazem sexo com homens, mulheres e homens trans, e pessoas não binárias de Argentina, Brasil, México e Peru”, diz a Unaids.
“Além disso, na última década, embora as infecções por HIV tenham diminuído globalmente, na América Latina houve um aumento de 9%, com populações-chave e mais vulneráveis sendo desproporcionalmente afetadas”, argumenta o texto.
A entidade pede que a “Gilead Sciences e outras partes interessadas” iniciem negociações “para a redução dos preços dessa ferramenta fundamental de prevenção”.
Já a Sociedade Internacional de Aids afirmou que o licenciamento voluntário é “um importante passo à frente, mas grandes partes do mundo continuam excluídas, incluindo países onde os ensaios foram conduzidos”.
“Estamos esperançosos de que a velocidade com que esses acordos foram alcançados será mantida, e que o resto do mundo em breve se beneficiará de acordos semelhantes para tornar o lenacapavir mais acessível e oferecer uma opção mais potente na caixa de ferramentas de prevenção do HIV”, diz o comunicado.
Em entrevista à BBC News Brasil, o antropólogo Richard Parker, diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), classifica o acordo de licenciamento como um “escândalo”.
“Essa decisão demonstra não somente a desigualdade que continua a desequilibrar o campo da saúde supostamente global que vivemos hoje, mas também é mais uma demonstração de como a América Latina vem sendo quase sistematicamente marginalizada dentro deste sistema”, protesta o especialista, que também é professor titular emérito de Saúde Pública, Ciências Sócio-Médicas e Antropologia na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
“Esta marginalização é especialmente visível no caso da aids, tanto no Brasil quanto em outras partes da região, e mostra um certo desprezo, ou pelo menos falta de respeito, com que os principais atores do Norte Global tratam esta região”, complementa ele.
Barbosa, da SBInfecto, concorda que a prevenção do HIV alcançou “uma situação de ferramentas muito potentes e resultados fantásticos” — mas confessa uma certa frustração com as discussões sobre acesso.
“Trata-se de uma situação paradoxal. Dispomos das ferramentas, mas não conseguimos mudar o resultado. É como se tivéssemos um ótimo carro de Fórmula 1, garantíssemos a pole position, mas não conseguíssemos ganhar o grande prêmio no final”, compara ele.
Procurada pela BBC News Brasil para comentar o assunto, a Gilead Sciences não enviou respostas até a publicação desta reportagem.
Como o governo vê a questão
Barreira, responsável por comandar o programa de aids no Ministério da Saúde, admite que o lenacapavir não sai da pauta desde o anúncio dos resultados dos estudos no meio do ano.
“Nas reuniões que fazemos, todo mundo cobra e quer saber a nossa posição sobre o assunto”, confessa ele.
“O laboratório produtor tem preços absolutamente inviáveis do ponto de vista da saúde pública. Esse valor pode até funcionar para quem tem um seguro-saúde premium nos Estados Unidos e em outros lugares ricos”, pontua o médico.
Um artigo assinado por especialistas da Universidade de Liverpool, da Universidade de Oxford e do Hospital Universitário St. George, no Reino Unido, do Instituto de Medicina Tropical e Saúde Internacional, na Alemanha, e da Universidade Howard, nos EUA, estima que o lenacapavir chegue a custar até US$ 44.819 por pessoa por ano.
“Isso afundaria o Sistema Único de Saúde (SUS)”, acredita Barreira.
Na mesma pesquisa, os autores acreditam que seja possível derrubar esse preço para menos de US$ 100, caso exista uma compra grande de insumos farmacêuticos e uma produção massiva de doses do remédio.
“Ficaram fora da lista de licenciamento voluntário países com alta carga de HIV, como é o caso do Brasil. Ninguém licencia nada para a gente, porque o mercado aqui é muito grande”, diz Barreira.
“Além disso, pela nossa Constituição, a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Os fabricantes sabem disso e jogam para nós comprarmos pelo preço que eles quiserem vender”, complementa ele.
Segundo Barreira, o governo está numa fase de discussões preliminares, para entender qual será a política da Gilead Sciences.
“Até porque eles não anunciaram oficialmente o preço que será praticado nos países de média renda, como o nosso”, pondera o especialista.
“Nós precisamos também entender quais foram os critérios, e por que o Brasil foi excluído tanto do ponto de vista da fabricação das versões genéricas quanto do acesso por um baixo custo.”
Uma nova quebra de patente?
Em 2007, o Brasil fez o licenciamento compulsório do efavirenz, uma medicação que era amplamente usada no tratamento da aids.
À época, o governo fez longas negociações com o laboratório Merck Sharp & Dohme, responsável pelo remédio. O objetivo era reduzir o preço cobrado, de US$ 1,59 a unidade.
“Precisávamos garantir a sustentabilidade do programa de aids e impedir que houvesse um colapso no fornecimento das terapias”, lembra à BBC News Brasil o médico sanitarista José Gomes Temporão, ministro da Saúde responsável pela decisão, que foi tomada durante o segundo governo Lula (PT).
“O laboratório estava cobrando um preço muito superior ao que era praticado em várias outras partes do mundo. Nós tentamos negociar exaustivamente, mas não chegamos a um acordo. A saída que encontramos foi o licenciamento compulsório”, complementa ele.
Para Temporão, a quebra de patentes do efavirenz foi “a melhor decisão possível do ponto de vista da saúde pública”.
Num primeiro momento, o Brasil precisou importar a medicação genérica da Índia (que à época custava US$ 0,44 a unidade).
“Mas fizemos um consórcio com três empresas farmoquímicas nacionais e com a Farmanguinhos-FioCruz. Por meio da engenharia reversa, desenvolvemos um genérico próprio e, em um ano, tínhamos autossuficiência na produção. Conseguimos tratar um maior número de pacientes com o mesmo orçamento”, relata Temporão.
O médico sanitarista diz que não houve nenhuma contestação judicial à quebra de patente e que este é um instrumento previsto em tratados da Organização Mundial do Comércio, usado posteriormente também por Estados Unidos, Inglaterra e Itália.
“É claro que o licenciamento compulsório não deve ser usado em todas as situações, mas serve para garantir a defesa dos pacientes e o acesso ao tratamento num contexto de equilíbrio financeiro”, diz Temporão.
Mas será que o mesmo poderia ocorrer com o lenacapavir, num cenário hipotético de negociações emperradas e preço muito alto para a saúde pública?
Questionado sobre o assunto pela BBC News Brasil, Barreira respondeu que “não está autorizado a responder pela ministra” da Saúde, Nísia Trindade Lima.
“Mas posso dizer que temos feito essa discussão para avaliar até onde nós podemos ir”, acrescenta ele.
“Nós temos o precedente do licenciamento compulsório do efavirenz. À época, a discussão era sobre um custo de US$ 1,59. Agora, estamos falando de drogas de 40 mil dólares por ano. Trata-se de uma outra escala”, compara ele.
“Estamos numa fase de discussões preliminares, mas acredito que todas as medidas que garantam acesso à população precisam ser pensadas. Nossa disposição, claro, é ter uma negociação e chegar a um acordo.”
“O efavirenz foi uma exceção na História, nunca tivemos outro episódio de licença compulsória.”
“Mas nós contamos também com a boa vontade da indústria farmacêutica e a compreensão de que o SUS tem limites e precisamos lidar com a realidade”, conclui ele.
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