João do Rio na Flip: por que obra de redactor caiu no esquecimento, apesar da popularidade?
- Author, André Bernardo
- Role, Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
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O relógio marcava 21h40 quando João do Rio (1881-1921) tomou o caminho de mansão. Estava tão cansado que recusou invitação para ver a Tristão e Isolda no Municipal. No Largo da Carioca, sede do jornal A Pátria, pegou o primeiro táxi rumo à Avenida Meridional, atual Vieira Souto, em Ipanema, onde morava com a mãe, Florência.
Na esquina das ruas Pedro Américo e Bento Lisboa, no Catete, começou a passar mal. “Um copo d’chuva, pelo paixão de Deus!”, suplicou, levando a mão até o peito. Tarde demais.
Quando o motorista voltou do café mais próximo, já encontrou o passageiro morto no banco de trás.
Vítima de um infarto fulminante, João do Rio morreu no dia 23 de junho de 1921, aos 39 anos.
“A notícia espalhou-se pela noite carioca porquê uma epidemia”, escreveu o jornalista João Carlos Rodrigues na biografia João do Rio – Vida, Paixão e Obra (Cultura Brasileira, 2024).
O corpo de João do Rio foi levado para a sede do jornal que ele fundou em 1920. O morto foi embalsamado e vestido com o fardão da Ateneu Brasileira de Letras (ABL).
Apesar de ter sido eleito para a cadeira 26 em 1910, não frequentava a instituição desde 1919, quando Humberto de Campos (1886-1934), um macróbio desafeto, tornou-se acadêmico.
Por essa razão, sua mãe doou a livraria do fruto para o Real Gabinete Português de Leitura.
Assim porquê seu corpo não foi velado na ABL, também não foi sepultado no mausoléu da instituição.
Desavenças à secção, a popularidade de João do Rio era tanta que, segundo estimativas da era, 100 milénio pessoas compareceram ao seu enterro no São João Batista, em Botafogo.
“Nessa era, o Rio tinha 400 milénio habitantes”, estima Rodrigues. “Um quarto da população compareceu ao cemitério para prestar sua última homenagem”. A título de verificação, o funeral de Getúlio Vargas (1882-1954) atraiu 300 milénio pessoas.
De luto pela morte de João do Rio, os teatros suspenderam as sessões e o negócio não abriu suas portas.
“Os taxistas ofereceram corridas gratuitas para quem morava no subúrbio chegar até o velório”, observa a jornalista e editora Graziella Beting, organizadora do livro de crônicas Gente às Janelas (Carambaia, 2024).
O funeral atraiu tanto anônimos, porquê ambulantes, estivadores e prostitutas, quanto famosos, porquê políticos, escritores e socialites.
Só ex-presidentes da República, foram dois: Hermes da Fonseca (1855-1923) e Nilo Peçanha (1867-1924). Quem não pôde ir passou telegrama de pêsames ou mandou grinalda de flores.
Ostracismo literário
Apesar de sua enorme popularidade, a obra de João do Rio logo caiu em esquecimento. Solteiro, não deixou filhos. Mas, deixou um montão de 2,5 milénio textos, entre crônicas, contos e romances.
Em 1912, teve uma de suas peças, A Bela Madame Vargas, encenada no Municipal. A obra escandalizou o público ao mostrar uma inédita cena de ósculo.
“Era considerado impudico. Um verdadeiro tabu”, define Orna Messer Levin, doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e organizadora da florilégio de contos João do Rio (Editora Pátrio, 2010). “Mais um traço do pioneirismo de João do Rio”.
A memória do jornalista e redactor começou a ser resgatada em 1978 quando Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981), outro imortal da liceu, escreveu sua primeira biografia, A Vida Vertiginosa de João do Rio.
Hoje, o responsável de A Psique Encantadora das Ruas (1908), sua obra mais famosa, é homenageado na 22ª edição da Sarau Literária Internacional de Paraty (Flip), a mais importante do Brasil.
“Imagino que ele tenha ficado tanto tempo sem ser lido pelo próprio gênero em que escrevia – a crônica costuma ser tratada porquê um gênero menor – e porque não deixou herdeiros para levar adiante seu legado”, arrisca Ana Lima Cecilio, curadora do evento.
Há outras hipóteses para o indumento de João do Rio ser menos lido do que alguns de seus contemporâneos, porquê Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922).
“Durante muito tempo, não esteve nos livros didáticos e nas aulas de literatura, as duas principais portas de ingressão da leitura no Brasil”, afirma Fabiano Ormaneze, doutor em Linguística pela Unicamp e responsável do volume devotado a João do Rio da coleção infantojuvenil Black Power da Editora Mostarda.
“A segunda razão é que, sendo mais sabido porquê jornalista, a obra de João do Rio nem sempre esteve no cânone literário. Romances porquê Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881 – Machado de Assis) e Triste Término de Policarpo Quaresma (1915 – Lima Barreto) têm larga trajetória de saudação pela sátira”.
“Apagamento histórico”
Ao longo de sua curta trajetória, João do Rio sofreu incontáveis ataques por ser gordo, pardo e homossexual.
Em 1902, tentou a curso diplomática, mas foi rejeitado pelo Barão do Rio Branco (1845-1912).
“Por ser gorducho e amulatado, estava muito distante do tipo garboso preposto pelo chanceler”, descreve Rodrigues em sua biografia.
Apesar dos ataques racistas e homofóbicos, não foi o preconceito ou a discriminação os responsáveis pelo seu “apagamento histórico”.
“Houve quem criticasse o que João do Rio escrevia. Não era unanimidade. Para muitos, era considerado pré-moderno”, observa a historiadora Tânia Regina de Luca, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e organizadora do volume O Momento Literário (Rafael Copetti Editorial, 2019).
“Os autores modernistas e os críticos paulistanos estavam mais interessados em promover a teoria de vanguarda. Neste sentido, o Rio de Janeiro da Belle Époque foi entendido porquê ‘retardado’”, endossa Giovanna Dealtry, doutora em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e organizadora do volume de crônicas Vida Vertiginosa (José Olympio, 2021).
“Uma literatura que, com exceção de Lima {Barreto} e Euclides da Cunha (1866-1909), não pensava no Brasil. Uma vez que vemos, um grande erro”.
Pouco mais de um século depois de sua morte, João do Rio volta às livrarias. A debutar pela biografia de João Carlos Rodrigues, publicada pela última vez em 2010.
“Teve a coragem de reptar a sociedade com ideias moderníssimas. Avante de seu tempo, defendeu, entre outras pautas, o voto feminino e o divórcio”, ilustra.
Outros títulos, porquê A Psique Encantadora das Ruas, Pavor Dentro da Noite e Memórias de Um Rato de Hotel, também ganharam novas edições da José Olympio, Antofágica, Carambaia, Bandeirola e Gavinha.
“A redescoberta tardia da obra de João do Rio tem algumas vantagens. Está sendo lido por prazer e não por obrigação”, afirma Ormaneze.
De repórter a diretor
João do Rio é o pseudônimo mais famoso de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Era fruto de Alfredo Coelho Barreto, um professor de matemática gaúcho, e Florência dos Santos Barreto, uma negra alforriada carioca, e irmão de Bernardo Gutemberg, dois anos mais novo.
Se Paulo Barreto, seu nome de batismo, nasceu no dia 3 de agosto de 1881, no sobrado de número 284 da Rua do Sanatório, atual Rua Buenos Aires, João do Rio, seu alter-ego, nasceu na redação do jornal Publicação de Notícias no dia 26 de novembro de 1904. Houve outros, porém: X, Joe, Claude, João Coelho, José Antônio José…
A inspiração para o pseudônimo famoso veio da França. Napoléon-Adrian Marx (1837-1906) assinava sua poste no Le Figaro porquê Jean de Paris. “De Jean de Paris para João do Rio foi um pulo”, brinca Rodrigues.
Na puerícia, Paulo Barreto estudou no Escola São Bento e, na juvenilidade, no Ginásio Pátrio, atual Escola Pedro II.
Seu caçula, de saúde frágil, não conseguiu ir tão longe – morreu precocemente, aos 12 anos. Ainda no escola, Paulo Barreto montou seu primeiro jornal, O Tentativa, com alguns colegas de turma.
Seu primeiro trabalho, não por eventualidade, foi em um jornal: A Tribuna, em 1899. Seu primeiro texto foi uma sátira da peça Uma Vivenda de Bonecas (1879), do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).
“Viver da pena é difícil. Mas, João do Rio conseguiu subir socialmente porquê jornalista. Não teve trabalho público”, observa Tânia de Luca.
“Em 1919, foi mandado para a Europa, porquê correspondente estrangeiro, para ocultar a Conferência de Versalhes pelo jornal O Paiz”. A viagem deu origem a três volumes de crônicas e reportagens.
João do Rio se distinguiu dos colegas de profissão por trocar a redação pela rua. Em vez de redigir a material a partir do relato de terceiros, se transformou em testemunha ocular da própria notícia.
“Foi o primeiro a visitar um terreiro de candomblé, a ver a uma roda de samba e a ocultar uma partida de foot-ball”, destaca a editora Beting.
Foi logo que nasceu, entre outras reportagens, As Religiões no Rio, uma série sobre pluralidade religiosa publicada no jornal Publicação de Notícias entre janeiro e março de 1904.
O repórter entrevistou líderes religiosos, porquê evangélicos, judeus, espíritas, cartomantes e até um exorcista do Morro do Forte!
Até 1889, data da Proclamação da República, era proibido praticar outra religião que não fosse a católica.
Em dezembro de 1904, a série foi transformada em livro e, em exclusivamente seis meses, vendeu oito milénio exemplares. Um verdadeiro best-seller!
Outra série famosa assinada por João do Rio foi O Momento Literário. Publicada na Publicação entre março e maio de 1905, trazia entrevistas, feitas por epístola ou presencialmente, com 28 escritores.
Três anos depois, ao publicar o livro homônimo, João do Rio acrescentou mais oito sabatinas. Participaram do projeto, entre outros literatos, Aluísio Azevedo (1857-1913), Olavo Bilac (1865-1918) e Perdão Aranha (1868-1931).
Outro diferencial do responsável, indicado porquê um dos pais da crônica moderna, foi conciliar técnicas jornalísticas com recursos literários.
Em suas andanças pela capital federalista, João do Rio se vestia porquê um real dândi: fraque, cartola, bengala e monóculo.
Certa ocasião, ao entrar em um teatro com um chamativo colete cor de cereja, ouviu um princípio de vaia.
À era, o prefeito Pereira Passos (1836-1913) sonhava transformar o Rio numa espécie de “Paris tropical”.
Duelo de titãs
Diante da recusa do Barão do Rio Branco de aceitá-lo no Itamaraty, João do Rio tentou uma vaga na ABL. Em 1905, perdeu para Heráclito Perdão (1837-1914) por oito votos a 17; dois anos depois, desistiu da disputa em prol da candidatura de Artur Jaceguai (1843-1914) e, em 1910, ganhou de Pereira Barreto (1840-1923) por 23 a cinco.
“Até hoje, João do Rio ostenta o título de ser o mais jovem a ser eleito para a ABL”, afirma Ormaneze. “Não bastasse, foi também o primeiro a tomar posse usando o famoso fardão da liceu”.
Humberto de Campos não foi o único a trocar farpas com João do Rio. Seu desafeto mais famoso foi Lima Barreto. Ao redigir Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto criou Raul Gusmão à imagem e semelhança do rival.
“A orientação sexual de Paulo Barreto sempre gerou suspeita e troça por secção dos colegas. Talvez levado pela caçoada universal, Lima, em vez de poupar o colega, incendiou ainda mais os termos: ‘mistura de suíno e símio’, ‘fisionomia de porco Yorkshire’ e ‘corpo alentado de elefante indiano’ são algumas das imagens que usa”, relata a historiadora e acadêmica Lilia Schwarcz na biografia Triste Visionário (Companhia das Letras, 2017).
Em 1908, ao viajar para Portugal, João do Rio deu o troco. Ao ser indagado por um livreiro lisboeta se já tinha ouvido falar de um tal de Lima Barreto ou, portanto, de seu romance, Isaías Caminha, responde que não.
Dias depois, ao cruzar pelas ruas do Rio com Lima Barreto, abre um sorriso porquê se zero tivesse ocorrido. “Que fruto da p***!”, vociferou seu oponente em epístola para Noronha Santos.
Quando João do Rio morreu, Lima Barreto até pensou em se candidatar para sua vaga na ABL. Chegou a se inscrever, mas, dois meses depois, mudou de teoria.
“Talvez soubesse que não seria eleito”, especula Schwarcz em Triste Visionário. Lima Barreto morreu em 1922, aos 41 anos, sem realizar o sonho de ingressar na instituição.
“Os 15 dias mais felizes da minha vida”
Para Rodrigues, suspeitava-se da homossexualidade de João do Rio por três razões: morava com os pais; não tinha prometida (ou amante) e era fã de Oscar Wilde (1854-1900).
Entre outros títulos do redactor irlandês, traduziu para o português o romance O Retrato de Dorian Gray (1890) e a peça Salomé (1891).
Já sua obesidade era fruto de hipotireoidismo. Isso explicaria, segundo seu biógrafo, o rosto inchado, os lábios espessos e o excesso de peso.
“Ninguém é gordo por prazer”, queixou-se João do Rio. Por repetidas vezes, refugiou-se em uma rancho em Poços de Caldas, a 461 quilômetros de Belo Horizonte, para cuidar da saúde.
Ao todo, João do Rio viajou quatro vezes para a Europa – três a passeio e a última, em 1919, a trabalho.
Da primeira vez, visitou o túmulo de seu redactor predilecto no badalado Père-Lachaise, o cemitério das celebridades de Paris. Noutra ocasião, fez amizade com a dançarina americana Isadora Duncan (1877-1927).
Em 1916, durante visitante ao Brasil, os dois tiveram um romance. Isadora teria dançado nua para seu estremecido. Onde? Não se sabe. “Uns dizem a Cascatinha da Tijuca; outros, a Praia de Ipanema”, conta Rodrigues. O sítio exato, a julgar por uma epístola escrita por João do Rio para o poeta português João de Barros (1881-1960), parece não ter valimento. O que importa é que deixou saudades. “Passei os 15 dias mais felizes da minha vida”, derrete-se.
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