Queda de Assad na Síria confirma que 2024 foi pior ano para o Irã em décadas
Não faz muito tempo que o líder supremo do Irã descreveu Bashar al-Assad como o “herói do mundo árabe”, em cuja sobrevivência a república islâmica gastou dezenas de bilhões de dólares.
No entanto, no momento em que Assad mais precisou, seu aliado mais próximo o deixou na mão.
Este foi, muito possivelmente, o pior ano para os interesses do Irã desde sua sangrenta guerra com o Iraque na década de 1980.
Suas milícias aliadas em Gaza e no Líbano — Hamas e Hezbollah, respectivamente — estão dizimadas depois de mais de um ano de guerra com Israel; seu arqui-inimigo Donald Trump vai voltar à Casa Branca; e o regime da Síria, a porta de entrada para sua influência no mundo árabe, desmoronou como um castelo de cartas.
Após décadas de apoio inabalável a um regime para o qual forneceu ajuda militar, econômica e política, o Irã viu a situação mudar na Síria e começou a conversar com os grupos rebeldes que conseguiram derrubar Assad, em uma tentativa de evitar um confronto entre os países vizinhos.
“É o povo sírio quem deve decidir sobre o futuro do seu país e do seu sistema político e governamental”, declarou o presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, no domingo (8/12).
Ele também acrescentou que os sírios devem ser livres para fazer isso sem interferência estrangeira.
A mensagem é nada menos que paradoxal, vinda do país que mais mexeu os pauzinhos para manter Damasco em sua órbita. E os rebeldes não se esqueceram disso.
No domingo, depois de chegar triunfante a Damasco, o líder do grupo que foi crucial para derrubar Assad, Ahmed al-Sharaa, alfinetou Teerã ao discursar na mesquita de Umayyad.
“Esse novo triunfo, meus irmãos, marca um novo capítulo na história da região, uma história repleta de perigos (que deixou) a Síria como um playground para as ambições iranianas, disseminando o sectarismo e alimentando a corrupção.”
“Eles estão muito preocupados em Teerã neste momento”, avalia Roxane Farmanfarmaian, professora de política internacional do Oriente Médio e Norte da África na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Segundo ela, “é muito confuso o que o Irã fez para chegar a este ponto”.
Para começar, por causa da mudança de regime, eles correm o risco de perder a passagem terrestre que tinham para apoiar o Hezbollah no Líbano — “aquela ponte terrestre para o Crescente que eles se empenharam tanto para manter”, explica a especialista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
O território sírio permitiu que Teerã enviasse livremente armas, homens e dinheiro para a milícia islâmica libanesa, um de seus maiores aliados. Manter esses canais abertos agora vai ser extremamente difícil.
A Síria era uma peça-chave no chamado “Eixo de Resistência” — a aliança promovida pelo Irã para fazer frente a Israel, que também inclui o Hezbollah, os houtis do Iêmen e as milícias xiitas do Iraque —, que agora se vê seriamente enfraquecido.
A queda de Assad também mostra, de acordo com Farmanfarmaian, “uma fraqueza significativa na capacidade do Irã de influenciar os acontecimentos e também de defender seus aliados e seus próprios interesses”.
Embora ainda não esteja claro “até que ponto eles foram realmente prejudicados pela guerra do Líbano e pelos ataques de Israel”, afirma a pesquisadora, parece que estes dois eventos “enfraqueceram seriamente o Exército iraniano e reduziram seu alcance estratégico”.
Consequências para o Irã
A guerra civil na Síria começou depois que a violenta repressão do regime de Assad aos protestos pacíficos que eclodiram no país durante a Primavera Árabe, em 2011, colocou Damasco em uma situação difícil de sair.
As forças curdas, o Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês), apoiado pela Turquia, as Forças Democráticas da Síria (SDF, na sigla em inglês), apoiadas pelo Ocidente, os jihadistas da Al-Qaeda e do Estado Islâmico e dezenas de grupos insurgentes locais entraram em confronto entre si e com o Exército sírio ao longo dos últimos 13 anos.
Em meio a este caos, o Irã e o Hezbollah, assim como a Rússia, foram cruciais para sustentar o regime.
Mas, nos últimos anos, com a diminuição da intensidade dos combates, Teerã retirou grande parte de suas forças militares posicionadas na Síria, supondo que a situação era administrável, de acordo com Ray Takeyh, pesquisador de estudos do Oriente Médio no think tank americano Council on Foreign Relations (CFR).
Desde o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, um dos principais comandantes da Guarda Revolucionária, em um ataque dos EUA em janeiro de 2020, o Irã deixou a defesa de seus interesses na Síria nas mãos do Hezbollah, explica Takeyh, em uma análise publicada pelo think tank.
A velocidade com que os grupos insurgentes conseguiram avançar, em apenas uma semana, a partir da província de Idlib, no norte, e do sul, até a capital, deixou os iranianos perplexos.
O próprio ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araghchi, reconheceu em uma entrevista que, embora tenham recebido informações de que grupos rebeldes estavam planejando um levante no norte, “o que nos pegou desprevenidos foi, por um lado, a incapacidade do Exército sírio de fazer frente ao avanço e, por outro, a rapidez dos acontecimentos”.
As declarações feitas nos últimos dias pelo alto escalão da república islâmica também sugerem um certo esgotamento por parte do regime de Teerã em relação a seu aliado agora defenestrado.
Araghachi disse na televisão que o motivo da queda de Bashar al-Assad foi a falta de diálogo com os manifestantes e a falta de esforço para chegar a uma solução política para fechar um acordo com a oposição, de acordo com o serviço de notícias persa da BBC.
Isso não deixa de ser paradoxal para um governo que foi acusado pelas Nações Unidas e por organizações humanitárias de reprimir os direitos humanos, o direito de manifestação e de prender centenas de opositores no Irã.
De acordo com o ministro das Relações Exteriores iraniano, Teerã, Ancara e Moscou haviam concordado, durante o chamado Processo de Astana (diálogo iniciado em 2017 pelos três aliados da Síria para encontrar uma solução diplomática para a guerra), em administrar o descontentamento popular sírio.
Mas a “inflexibilidade e lentidão” do governo de Assad em adotar mudanças e chegar a uma solução política levaram ao seu colapso, acrescentou Araghachi.
Assad havia se tornado “mais um fardo do que um aliado, o que significa que seu tempo havia se esgotado”, admitiu Saeed Laylaz, um analista próximo ao governo iraniano, ao Financial Times. Continuar a defendê-lo não se justificava mais — e teria custos inaceitáveis, de acordo com a fonte.
Não é fácil quantificar o custo do apoio iraniano ao regime de Assad.
Os dois países estreitaram relações durante a guerra entre Irã e Iraque, na qual a Síria, diferentemente da maioria dos países árabes, ficou do lado do Estado persa.
Na época, Damasco ajudou o país a contornar as sanções internacionais ao canalizar por meio de seu território a venda de armas do bloco oriental para Teerã, conforme explica Ali Ramzanian, do serviço persa da BBC.
Mais de US$ 30 bilhões
A ajuda militar foi enviada a partir de 2011, inicialmente sob o pretexto de combater o Estado Islâmico.
A mídia iraniana estima que esta ajuda esteja entre US$ 30 bilhões e US$ 50 bilhões, embora possa ser muito maior, de acordo com Ramzanian.
É muito improvável que este dinheiro, que os oponentes e críticos do governo dos aiatolás consideram uma afronta aos iranianos, seja recuperado.
O fato de a principal facção rebelde que liderou a investida contra Assad ser uma milícia islâmica que tem suas raízes na Al-Qaeda — embora tenha se desvinculado do grupo anos atrás — preocupa os países vizinhos da Síria, inclusive o Irã.
“Nenhum líder árabe, especialmente no Golfo, está muito confortável com esse desdobramento, e acho que os iranianos e os árabes estão bastante de acordo com isso”, diz a professora de Cambridge.
Os governos árabes temem que a ascensão de um movimento islâmico na Síria possa dar asas a grupos fundamentalistas locais.
Por enquanto, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) assegurou que pretende colaborar com todos os grupos sírios, e garantiu a proteção das minorias.
“Mas, independentemente do que diga, é um grupo islâmico que tem opiniões muito fortes sobre os xiitas, o mesmo que aconteceu com o Talebã. Eles diziam que eram inclusivos e mais modernos, e veja o que aconteceu no Afeganistão. Portanto, há uma grande preocupação (no Irã) de que haja uma diferença entre o que eles dizem e o que vão fazer”, observa Farmanfarmaian.
Como explica Kayvan Hosseini, do serviço persa da BBC, a maioria da população síria, 75%, é sunita, enquanto os xiitas, incluindo alauítas, ismaelitas e imamitas, representam apenas 10%.
“Embora o futuro da Síria ainda não esteja claro, o que está claro é que o Irã tem poucas chances de repetir os cenários do Líbano, do Iraque e até mesmo do Iêmen para ganhar influência e poder”, avalia Hosseini.
Que opções restam, então, ao Irã?
De acordo com Ray Takeyh, a situação atual oferece duas alternativas para o Irã: aumentar a dissuasão nuclear ou se abrir para negociações.
Teerã não possui armas nucleares, mas tem um programa nuclear e, de acordo com a Organização Internacional de Energia Atômica, acelerou o processo de enriquecimento de urânio a níveis preocupantes.
O Irã sempre alegou que seu programa nuclear se destina apenas a fins pacíficos.
“À medida que outros pilares da dissuasão desmoronam, aumenta a importância da arma definitiva”, observa o especialista do CFR.
Neste contexto, “é provável que o Irã aceite ofertas de diplomacia americana e europeia, possivelmente até mesmo do novo governo Trump”.
Para Farmanfarmaian, não está claro que Teerã vai estar aberto a negociar com as potências ocidentais, mas talvez com os países vizinhos.
“O Irã iniciou recentemente um processo de comunicação com seus vizinhos sauditas que tem sido gradual, mas que caminha em uma direção. E (a queda de Bashar al-Assad) vai reforçar isso”, diz ela.
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