Série reduz Ayrton Senna ao retratá-lo como bom moço – 24/11/2024 – Ilustrada

“É uma coisa única, é como uma droga. É algo tão forte, tão intenso, e, uma vez que você experimenta, fica procurando por ela o tempo todo.” A frase é do próprio piloto, mas não está na série “Senna”, que estreia na sexta-feira (29) na Netflix. Aparece no documentário homônimo, de 2010, também disponível no serviço de streaming. A gravação de sua voz, em inglês, é sobreposta a um close de seu rosto no pódio, em 1985, quando venceu pela primeira vez na Fórmula 1. Não parece em êxtase, mas sim torpe, inebriado.

A droga descrita por Ayrton Senna da Silva é a sensação da vitória, algo que vai consumi-lo até o final. Sutil, a passagem é o melhor momento do filme do diretor Asif Kapadia. “Senna”, o documentário, é produzido em conjunto com a família do tricampeão mundial, personagem de uma insólita tragédia brasileira, que culmina com sua morte estúpida transmitida ao vivo pela TV, em 1994. “Senna”, a ficção, é quase a mesma coisa, com o ônus de simplificar demais seu retratado.

Perseguir a verossimilhança é o mínimo que se espera das produções calcadas em biografias. Soa óbvio, mas não é como reproduzir a verdade. “The Crown”, para ficar no cardápio da Netflix, chegou ao ápice desse processo quando o palácio de Buckingham se viu obrigado a reiterar que a série era uma ficção.

“Senna” procura esse efeito, é claro. Os fatos estão lá, os principais personagens também; há elipses e hipérboles, omissões e achados. A altura da barra aumenta com a idade do crítico e sua fluência no esporte. A este que escreve, o Galvão Bueno ficcional soa como uma paródia, e Reginaldo Leme parece Roberto Cabrini. Nêmesis, Alain Prost nunca é chamado de “professor”. Checagens ocuparão especialistas novos e antigos.

A questão não é tanto a história, bem conhecida, mas o que se faz dela. Senna era um herói complexo, cheio de nuances, contradições até. Reduzi-lo ao bom moço, filho da família de classe média alta da zona norte de São Paulo, que foi para a Europa vencer, contra tudo e contra todos, temente a Deus, namorado de Xuxa e preocupado com as crianças brasileiras, é um desperdício.

Há tentativas em “Senna”. Sua relação conflituosa com a imprensa inglesa, à época muito importante na F1, a fria e calculada autogestão da carreira e o sacrifício da vida pessoal são alguns dos fios narrativos apresentados nos primeiros dos seis capítulos da série. Eles não se conectam, no entanto, com a construção do mito e do tamanho que alcançou. Parece que Senna nasceu bom, e todo o resto apenas aconteceu.

Fosse assim tão simples, as cenas de corrida bastariam. Há na série um minucioso trabalho de memória visual. Carros, capacetes, macacões, tudo muito próximo daquilo que se viu décadas atrás. Exceção feita à dinâmica de algumas sequências, com momentos apelativos, dignos de Speed Racer, tradução imprópria para as emocionantes cotoveladas da F1 dos anos 1980 e 1990. Senna era bom de cotovelo, como seu sucessor, Michael Schumacher, mas isso não aparece na história contada pela série. Ao pintá-lo como herói, sua humanidade é deixada de lado, e ele se torna piegas, sem contornos, adolescente, quando era o oposto disso.

Senna morreu acelerando um carro ruim, em uma pista ruim, caçado por um adversário com equipamento superior e provavelmente irregular. Sua adição pela droga que bem descreveu quando experimentou pela primeira vez era alta a ponto de arriscar muito. Mostrar o ser humano teria sido muito mais interessante do que insistir no herói.



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