Crise na Alemanha: ‘O milagre alemão terminou, e Europa sofrerá as consequências’
A Alemanha está passando por um momento um tanto turbulento. Seus indicadores econômicos estão deixando a desejar há anos, e ameaçam seu status de “milagre econômico”. E, com a fragilidade da principal economia da zona do euro, os países vizinhos também vão sofrer.
O país não é mais o Exportweltmeister, o “campeão mundial de exportações”, como era conhecido nos mercados internacionais.
No auge da hiperglobalização, a Alemanha chegou a ser o maior exportador do mundo. O gás russo fornecia combustível barato às suas indústrias, e a China era um grande parceiro comercial.
Não foram as únicas causas.
“Talvez o maior choque de todos tenha vindo da tecnologia”, diz Wolfgang Münchau, diretor da publicação especializada EuroIntelligence e autor do livro Kaput: The End of the German Miracle (“Kaput: o Fim do Milagre Econômico Alemão”, em tradução livre).
“A Alemanha de hoje tem uma das piores redes de telefonia celular da Europa. O fax ainda reina no Exército e nos consultórios médicos. E há muitas lojas que ainda só aceitam dinheiro em espécie.”
“Para dar um exemplo de como o país ficou para trás, no início os dirigentes da indústria automotiva alemã, em sua maioria homens, consideravam os carros elétricos brinquedos para meninas”, escreveu o autor.
Para Münchau, esse declínio vem se desenvolvendo há anos. “As piores decisões foram tomadas durante o longo reinado de Angela Merkel. Na década de 2010, a Alemanha aumentou sua dependência do gás russo, investiu menos em fibra óptica e infraestrutura digital, e aumentou sua dependência das exportações.”
“É um modelo que, por diversos fatores, se tornou obsoleto.”
Apesar de a Alemanha ser celebrada como líder do mundo ocidental, houve, segundo Münchau, uma falta de reformas econômicas significativas e um foco excessivo na política externa em detrimento da inovação e do planejamento econômico de longo prazo.
Hoje, as grandes empresas do setor químico, de engenharia e automotivo estão sofrendo — e, com elas, as redes empresariais menores que fornecem componentes.
O exemplo mais evidente foi apresentado recentemente pela Volkswagen. O maior empregador do setor privado da Alemanha ameaça fechar fábricas no país pela primeira vez em 87 anos de história.
Made in Germany já foi um símbolo da tecnologia mais avançada e confiável, mas a Alemanha não soube adaptar sua indústria mecânica ao modelo digital, segundo Münchau.
Além disso, neste mês, o governo de coalizão liderado por Olaf Scholz entrou em colapso, deixando o país sem um orçamento geral e forçando a convocação de novas eleições para fevereiro de 2025.
Mas como é possível que uma das nações tecnologicamente mais avançadas do mundo tenha ficado para trás?
Nesta entrevista, Wolfgang Münchau analisa os diversos fatores que arrastaram a principal economia da zona euro para este momento conturbado.
BBC News Mundo – A Alemanha tem hoje uma economia com crescimento muito baixo, ao qual ninguém está acostumado. O que vai acontecer na Europa?
Wolfgang Münchau – A Europa vai sofrer. A Alemanha foi seu motor de crescimento, mas agora uma Alemanha que não cresce está politicamente menos disposta a ter grandes programas de apoio à União Europeia (UE). O país é um grande contribuinte líquido para seu orçamento.
Mas não se pode contar com a Alemanha estagnada para financiar a UE da mesma forma que antes, e ela pode relutar em financiar a guerra na Ucrânia.
Porque se não há crescimento, não há margem fiscal para expandir o orçamento. Por isso, veremos decisões difíceis, e todas elas estão interligadas.
BBC News Mundo – Há algum país que possa substituir a Alemanha como motor da Europa?
Münchau – Não acredito que haja nenhum, sobretudo por uma questão de tamanho, a Alemanha tem 85 milhões dos 500 milhões de habitantes da União Europeia, e sua economia é cerca de 20% maior que a segunda maior economia da UE.
BBC News Mundo – Quando começou o milagre econômico alemão?
Münchau – Começou realmente depois da Segunda Guerra Mundial. No fim da década de 1940, houve um período de novas empresas e muito dinamismo na economia, com base na engenharia e na indústria.
Os oleodutos e os reatores nucleares foram as engrenagens que impulsionaram a economia alemã. Eram a força vital do seu modelo industrial. Foram estes oleodutos que mais tarde dariam à Alemanha acesso ao petróleo norueguês e ao gás russo. Essa primeira fase do milagre durou até o início da década de 1970.
O período de 1980 a 1990 foi mais problemático porque a unificação custou muito dinheiro. Mas, em 2005, chegaria uma segunda fase, que durou até aproximadamente 2018.
A Alemanha viveu um período bem-sucedido entre 2005 e 2015, conhecido como “milagre alemão moderno”.
Entre os fatores que contribuíram para este sucesso, estão as reformas do mercado de trabalho introduzidas pelo chanceler Gerhard Schröder em 2003, que levaram à moderação salarial, além do gás barato da Rússia, da liberalização do transporte marítimo e da logística de contêineres.
E também havia a forte demanda de bens industriais alemães por parte de economias em rápido crescimento, como a China ou a Índia.
BBC News Mundo – O que indica que “o milagre” acabou?
Münchau – Em termos de dados e estatísticas publicadas, podemos ver isso por volta de 2018. Mas tem sido um processo progressivo, cujas causas remontam a muitos anos atrás.
O que aconteceu com a Alemanha é que ela se tornou muito dependente de algumas indústrias, em especial da indústria automotiva. Isso é bastante raro.
A maioria dos países grandes, como Estados Unidos, China, Brasil ou Japão, possui indústrias diversificadas. Eles não dependem de um ou dois setores.
Mas a Alemanha se tornou muito dependente dos automóveis, dos produtos químicos e também das máquinas de engenharia mecânica.
Essas três indústrias eram extremamente importantes para a economia alemã e sofreram problemas semelhantes desde 2018.
BBC News Mundo – Quais foram esses problemas?
Münchau – Um deles foi a crise do aumento dos preços da energia, que se tornou um problema específico após a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin. Mas, no caso do setor automotivo, aconteceu outra coisa: não conseguiu inovar.
Não está na vanguarda dos veículos elétricos. Continuou vendendo seus automóveis antigos movidos a combustível, e investiu nas tecnologias erradas.
O que vemos agora é que a Tesla e os chineses são os líderes em veículos elétricos, e os alemães ficaram para trás.
De certa forma, a obsessão da Alemanha com a indústria destaca a incapacidade do país de aceitar que as economias ocidentais modernas são baseadas em serviços, e não em manufatura.
BBC News Mundo – Um amigo seu disse para você não escrever este livro, porque a Alemanha tem um histórico de se recuperar quando menos se espera. Isso pode acontecer desta vez? Ela pode renascer?
Münchau – Esta crise é diferente das anteriores, quando os problemas eram a competitividade e os custos. Esta é a crise em que a Alemanha, como país, está vendendo produtos obsoletos, que já não estão na vanguarda da tecnologia.
Isso se deve ao fato de a Alemanha ter perdido o século 21 em termos de toda a revolução digital. Passou anos investindo nas tecnologias equivocadas. Nos automóveis, isso é óbvio porque podemos ver.
Mas também vimos uma digitalização lenta das indústrias existentes. A tecnologia digital invadiu os dispositivos mecânicos em que o país era líder, e não soube se adaptar.
BBC News Mundo – Este fenômeno na indústria está relacionado com a aversão dos alemães à digitalização que você menciona em Kaput?
Münchau – Acho que sim. É possível ver isso em muitas áreas da vida pública e em muitos setores do governo que ainda usam aparelhos de fax. Da mesma forma que nos consultórios médicos.
Isso também pode ser observado na telefonia e na cobertura de celular, que é muito fraca em muitos lugares, e na implantação de fibra óptica, que também está muito atrasada.
A Alemanha praticamente não tem nenhuma representação em termos de inteligência artificial. Não fez esses investimentos. E esse é o problema de uma economia que se especializa demais.
A mudança na geopolítica também jogou contra eles. Muitas coisas aconteceram juntas.
BBC News Mundo – Você acha que a sociedade alemã é tecnofóbica?
Münchau – Sim. E não se trata apenas do digital. Existe uma atitude antitecnologia que prevalece na sociedade. Isso se aplica ao dinheiro eletrônico ou até mesmo aos cartões de crédito.
Vejamos o exemplo da energia nuclear. A Alemanha nunca esteve perto de um acidente. Mesmo assim, decidiu se livrar das suas usinas nucleares, enquanto em outros países elas são uma parte muito importante do seu fornecimento de energia barata.
BBC News Mundo – No livro, você diz que o sucesso da Alemanha nas décadas passadas lançou as bases para a crise atual. Ou seja, o que permitiu à Alemanha ser bem-sucedida no passado é agora o que está prejudicando o país. Isso é um pouco paradoxal, não?
Münchau – Exatamente. O que foi um ponto forte em um período é a base para a fraqueza agora. O país era muito dependente da Rússia e da China e, desde que a geopolítica corresse bem, esse era um ótimo modelo que produzia crescimento e prosperidade. O mesmo acontece com a tecnologia.
Mas ambos os fatores mudaram, enquanto as empresas permanecem as mesmas, ainda tentando fazer negócios na Rússia e na China.
Existem boas empresas alemãs, mas os grandes lucros não estão sendo obtidos na área de engenharia, como costumava ser o caso — mas, sim, no campo da inteligência artificial e tecnologias digitais.
As grandes margens de lucro que as empresas alemãs costumavam desfrutar agora diminuíram. Acho que esse é o ponto-chave. A Alemanha não se adaptou, e é por isso que está na situação atual.
BBC News Mundo – Fiquei surpresa ao ler que “as piores decisões para a Alemanha foram tomadas durante o longo reinado de Angela Merkel, quando ela era celebrada como a líder do mundo livre”. O que aconteceu nesse período?
Münchau – Merkel se concentrou principalmente na política externa. Não estava interessada em reformas econômicas. Não acredito que ninguém se lembre de nenhuma reforma relevante aprovada na época dela, com exceção do aumento da idade para aposentadoria.
É claro que ela foi uma figura indispensável na Alemanha. Era impossível formar uma coalizão sem seu apoio ou sua presença. Ela também era muito popular pessoalmente, mas foi um bom período.
O crescimento econômico foi forte, e os governos geralmente não resolvem problemas quando tudo está indo bem.
A Alemanha se despediu de muitos avanços técnicos durante esse período. Foi também durante seu mandato que o país se tornou fortemente dependente da China e da Rússia e decidiu acabar com a energia nuclear.
Foram tomadas muitas decisões que, em retrospectiva, são consideradas como equivocadas. Merkel estava por trás de um amplo acordo de cooperação em termos de investimentos com a China.
Veja bem, não a estou culpando pessoalmente por tudo o que deu errado na Alemanha. Não estou atribuindo a culpa a nenhuma pessoa em particular.
Hoje, a Alemanha tem uma economia de crescimento muito baixo, e as pessoas se perguntam o que aconteceu. E o que eu argumento no meu livro é que essas decisões ruins foram tomadas nas décadas anteriores.
BBC News Mundo – Mas Merkel enfrentou de frente a crise do euro em 2008, a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, as ondas de migração para a Europa e a pandemia de covid-19?
Münchau – Ela brilhou como líder diplomática europeia em todas essas áreas. Ela tinha um relacionamento muito próximo com Obama nos Estados Unidos. Trabalhou com Putin.
Tinha uma presença bastante global, mas não era alguém que pensasse estrategicamente sobre a força econômica e a geopolítica. Ela tinha outras prioridades.
Sua grande força na política alemã foi a capacidade de liderar coalizões entre partidos de esquerda e de direita. Não é algo fácil. Era uma gestora muito, muito boa. E é por isso que sobreviveu por tanto tempo.
Não quero tirar seu mérito. Estou apenas dizendo que muitos dos problemas que a Alemanha tem hoje foram resultado de erros previsíveis cometidos por ela e durante seu mandato. Isso ficou claro.
A política energética foi provavelmente o caso mais extremo, mas tem também o caso da indústria automotiva.
Observe as grandes gigantes da tecnologia do mundo. Quase todas são dos Estados Unidos. Algumas, da China. Não há nenhuma europeia.
Mas a Alemanha é um país que poderia ter tido isso. É uma grande economia. Tem muito dinheiro. Mas isso faz parte do legado de Merkel, e vai ser muito difícil reverter essa situação.
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