Eleições EUA 2024: por que identidade racial de Kamala é questionada, e não só por Trump?

Kamala Harris se autoidentifica porquê negra e de origem indiana há décadas. Segundo o Instituto Vernáculo de Saúde dos EUA, uma pessoa pode ser negra sem ser afro-americana. “Um afro-americano (‘Afro-american’, em inglês) é uma pessoa cujas origens estão em qualquer um dos grupos raciais negros da África”, diz o site do Instituto Vernáculo dos EUA.

Já o termo preto (‘Black’) “é mais extenso e inclusivo” do que o afro-americano. “Alguém pode nascer na Jamaica, viver nos EUA e se identificar porquê preto, mas não afro-americano”. Há também quem entenda o termo afro-americano porquê uma referência aos descendentes de escravizados nos EUA (leia mais aquém).

Kamala afirma que Trump recorre a questionamentos à identidade e cor da pele da democrata para atacá-la e aprofundar divisões raciais entre os próprios americanos. Veículos de prelo dos EUA porquê, a revista New Yorker, qualificam tais comentários do republicano porquê “racistas”.

Já aliados de Trump, porquê o candidato a vice e senador J.D. Vance, não exclusivamente sustentam suas declarações porquê acusam Kamala de oportunismo racial/eleitoral.

“Ela falseia quem ela é a depender da audiência em frente à ela — e logo essa é quem ela é e quem ela sempre foi”, disse Vance, notando que Kamala fala em “Black English” em detrimento de um dialeto mais formal quando a plateia é majoritariamente negra.

Em um pleito que pode ser definido por uma margem de exclusivamente dezenas de milhares de votos, lucrar a preferência de certos grupos demográficos fará a diferença. E os eleitores negros são historicamente uma das reservas mais importantes de votos.

Há duas semanas, a Iniciativa de Opinião Pública da Howard University ouviu 963 prováveis ​​​​eleitores negros nos sete principais Estados-pêndulo do país (Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Carolina do Setentrião, Pensilvânia e Wisconsin), que devem definir o novo ocupante da Mansão Branca.

A pesquisa mostrou que 82% dizem que votarão em Kamala, enquanto 12% preferem o ex-presidente Donald Trump. Outros 5% estão indecisos e 1% planeja escolher outro candidato.

Pode parecer — e é — uma liderança confortável para a democrata. Mas, em 2020, em um levantamento comparável, o predecessor de Kamala e atual presidente Joe Biden aparecia com 7 pontos percentuais a mais do que ela entre os negros. Já uma pesquisa do New York Times e Siena College divulgada no último dia 12 sugere que a intervalo entre a preferência de eleitores negros por Biden em 2020 e por Kamala agora pode ser ainda maior, de 10 pontos percentuais.

Analistas concordam que para manter a possibilidade de vencer nesses Estados, Kamala precisa ocupar os votos deste grupo que ainda lhe faltam – e por isso mesmo Barack Obama acaba de ser mandado à Pensilvânia para exortar o eleitorado preto a escolhê-la. “Meu entendimento, com base nos relatórios que recebo de campanhas e comunidades, é que ainda não vimos os mesmos tipos de virilidade e participação em todos os setores de nossos bairros e comunidades porquê vimos quando eu estava concorrendo”, disse Obama à audiência negra, para na sequência repreendê-la.

“De um lado, vocês têm alguém que cresceu porquê vocês, os conhecem, foi à faculdade com vocês”, em referência à Kamala Harris, enquanto de outro lado, com Donald Trump, ainda nas palavras de Obama, “há alguém que tem demonstrado consistentemente desrespeito, não exclusivamente pelas comunidades, mas por vocês porquê pessoa. E ainda assim, estão considerando permanecer de fora?”

Mas a discussão supera — e muito — exclusivamente a mera matemática dos votos. Para alguns americanos (brancos e não brancos), é motivo de comemoração ter Kamala porquê potencialmente a primeira mulher negra a assumir a Presidência dos EUA, enquanto há mesmo entre os movimentos afro-americanos quem questione o real significado disso.

Em um cenário eleitoral marcado por tensões raciais – a exemplo da falsa argumento de Trump de que migrantes haitianos comem cachorros e gatos de estimação dos americanos — a disputa sobre a identidade de uma das presidenciáveis é também uma discussão sobre representação, preconceito e elaboração da sociedade.

Há uma intensa movimentação no tecido social americano: a identidade de Kamala Harris é, de certa forma, uma novidade para o país. Porquê outros 33,8 milhões de americanos (10% da população dos EUA), Kamala se considera uma pessoa multirracial ou miscigenada.

Foi exclusivamente nos anos 2000 que o Recenseamento americano passou a permitir que a população se identificasse com mais de uma raça. De lá para cá, leste é o grupo populacional que mais cresce no país.

Em confrontação, no Brasil, o termo mais próximo ao multirracial do Recenseamento americano é o pardo, aquele que se identifica porquê uma mistura de duas ou mais cores de pele, ou raças — incluindo branca, preta e indígena – na definição do Instituto Brasílico de Geografia e Estatística (IBGE) .

São mais de 92 milhões de brasileiros, ou 45% da população que se identificam porquê pardos, o que os torna o maior grupo dentre a população brasileira, segundo dados do Recenseamento de 2022.

Não é fortuita a diferença entre a atual elaboração populacional de Brasil e Estados Unidos, os dois maiores países das Américas, compostos por migrantes, indígenas e negros escravizados.

Enquanto no Brasil a miscigenação foi incentivada porquê uma política de Estado entre o termo do séculos 19 e o início do 20, nos EUA o que se viu foi justamente o contrário. Diferentes Estados e mesmo municípios do sul do país passaram a adotar o que ficou divulgado porquê leis Jim Crow, uma forma pejorativa de se referir a pessoas negras no século 19.

Tais regras determinavam a segregação totalidade entre brancos e não-brancos. Neste último grupo estavam todos que tivessem alguma prosápia negra, ainda que fosse exclusivamente por “uma pinga de sangue”, termo que batizou a regra.

Os dois grupos raciais estavam proibidos de ocupar os mesmos espaços públicos, fossem escolas, igrejas, hospitais, restaurantes, repartições públicas, ônibus e trens. Na prática, vivia-se sob um regime de apartheid.

Invariavelmente, as instalações acessíveis aos brancos eram superiores às reservadas aos demais. Em certos Estados, negros ficavam proibidos de morar nos mesmos bairros que brancos e eram impedidos de votar (até 1965) e casamentos interraciais também eram considerados ilegais até 1967.

“Foi exclusivamente na dezena de 1960, ou seja, já durante a vida de Kamala Harris e Donald Trump, que o apartheid americano instaurado legítimo e politicamente começou a ser desmantelado. Somos pessoas que nasceram no apartheid e isso deixa uma legado imediata. Quando pensamos em raça e racismo, não estamos falando exclusivamente sobre o legado da escravatura (abolida em 1863). Estamos falando sobre o legado de Jim Crow e isso não é um pouco remoto, de um pretérito muito distante, para a maioria dos americanos”, afirmou à BBC News Brasil a historiadora Martha Jones, professora da Johns Hopkins University e perito em temas de raça e escravidão nos EUA.

Para que o sistema de segregação funcionasse plenamente, o concepção de raça tinha que ser fixo e estritamente aplicado. E a miscigenação tinha que ser impedida — e ter um cocuruto dispêndio para quem ainda assim a praticasse.

“Não estamos falando exclusivamente de raça e racismo em termos sociológicos, econômicos ou culturais. Estamos falando de um sistema de leis e políticas que se baseava na visão de que existia uma pessoa branca, uma negra, uma ameríndia e uma asiática e que direitos e privilégios eram arbitrados por lei a partir desse prisma”, diz Jones.

É neste contexto — e em meio ao movimento das lutas pelos direitos civis — que Kamala Harris nasce, em 1964, em Oakland, na Califórnia. Ela foi criada de modo a espelhar essa multiplicidade identitária.

“Eu cresci frequentando uma Igreja Batista negra e um templo Hindu”, contou Kamala Harris ao jornal Los Angeles Times em 2015, durante sua campanha a uma vaga para o Senado americano. “Minha mãe indiana tinha consciência de que estava criando duas meninas negras (Kamala e a mana, Maya)”, relata Kamala, das quais nome significa Lótus em sânscrito, em seu livro The Truths We Hold.

Em diversas ocasiões, porém, ela destacou que a consciência de sua negritude “não veio em prejuízo da minha identidade indiana”.

Entre suas memórias de puerícia estão viagens à Índia e fins de semana na morada do pai, um economista professor da Universidade Stanford, em Palo Tá, no Vale do Silício.

“Os filhos dos vizinhos não eram autorizados a recrear com a gente porque éramos negras”, recordou Kamala, sobre essas visitas.

Nos anos 1970, sua turma na escola primária foi exclusivamente a segunda a ter alunos racialmente misturados — graças a uma decisão da Suprema Galanteio que anos antes derrubou a segregação escolar racial.

Tanto o pai, o economista jamaicano Donald Harris, quanto a mãe, a bióloga indiana Shyamala Gopalan, levavam Kamala e Maya às manifestações pelos direitos civis que culminaram na queda do regime de separação racial no país. Anos mais tarde, Kamala atribuiria sua decisão de estudar recta a três gigantes deste mesmo movimento: Thurgood Marshall, Charles Hamilton Houston e Constance Baker Motley.

O curso superior foi feito na maior universidade negra do país, a Howard University, em Washington DC, capital dos EUA. Lá, ela se tornou também presidente da Associação dos Estudantes Negros de Recta. E compôs a irmandade de mulheres universitárias afro-americanas Alpha Kappa Alpha.

Já senadora, atuou porquê integrante da Percentagem Negra e da Percentagem Asiático Americana — o que, aliás, nem sempre é provável. Uma das antigas regras congressuais ainda em vigor nos EUA impede, por exemplo, que membros da Percentagem Hispânica também participem da Percentagem Negra, o que obriga parlamentares latinos e negros a escolher em que vista de sua identidade militarão, ou logo a lutar por uma exceção à regra.

Kamala sempre teve uma postura reservada sobre sua identidade racial e as situações que viveu por culpa dela na sociedade americana. “Não me sinto obrigada a trovar longas baladas sobre minhas experiências com a injustiça”.

Em 2015, questionada sobre a questão racial, ela dizia se recusar a, em seus termos, “ser colocada nesta ou naquela caixinha”.

Para Martha Jones, o traje de que segmento da população — e do Congresso — ainda tenha dificuldade em assimilar a teoria de identidades miscigenadas pode ser explicada justamente pelo peso histórico do recente apartheid na formação da consciência política americana.

“Não deveria ser um pouco fenomenal a menos que você concorde com a teoria de que raças deveriam ser puras porque funcionam porquê um esboçar de direitos, privilégios e poder. E se usaremos raça para arbitrar as coisas, as pessoas que são chamadas de mistas são um vinda preocupante porque não cabem muito muito nas caixas, na perspectiva do apartheid”, diz Jones.

Roger House, professor emérito de História Americana do Emerson College, também vê ecos de apartheid e da ideologia que o instaurou no uso político feito por Trump e seus aliados da questão identitária de Kamala.

“Para compreender o questionamento de Donald Trump sobre a origem racial de Harris, é importante compreender os fundamentos da supremacia branca do movimento MAGA (Make America Great Again). É uma forma de minar a sua credibilidade porquê pessoa de cor e porquê americana de pais imigrantes. As duas questões (raça e transmigração) estão interligadas na política do Trumpismo”, afirmou House à BBC News Brasil.

Grupos extremistas e/ ou supremacistas brancos porquê Proud Boys e a Ku Klux Klan já endossaram publicamente a candidatura de Trump.

E embora oficialmente Trump tenha rejeitado o suporte de nacionalistas brancos, neonazistas, supremacistas brancos e outros grupos de ódio, em 2022, logo depois se lançar presidenciável, Trump jantou em seu resort com Nick Fuentes, um divulgado líder supremacista branco.

House afirma ainda que “os ataques de Trump” foram facilitados pelo modo “fluido” porquê Kamala tem tratado sua identidade, um pouco revelador de outro mal-estar social. Em que pese as condições de Kamala porquê mulher de origem negra e indiana, não é um resultado óbvio que a comunidade afro-americana se sinta representada por ela.

“A legado racial de Kamala Harris é uma faca de dois gumes para os negros americanos”, afirma Roger House, do Emerson College.

“Sim, ela é uma mulher negra, mas de origem imigrante tanto do lado paterno quanto materno. Porquê tal, alguns diriam que lhe falta a autêntica experiência negra americana e, portanto, a identidade. A base dessa identidade é uma memória coletiva de legado partilhada e uma poderoso crença num fado generalidade. Portanto, não a vejo porquê uma representante orgânica do “grupo étnico” preto americano”, conclui.

Assim porquê Barack Obama, o primeiro presidente preto dos EUA, das quais pai era queniano, Kamala não descende de negros que tenham sido escravizados nos EUA.

Sua risca de prosápia do lado jamaicano é um tanto quanto incerta. Segundo seu pai, Donald Harris, eles seriam parentes de um irlandês possessor de escravizados que se estabeleceu na Jamaica.

“Minhas raízes remontam, à minha avó paterna, Srta. Chrishy (nascida Christiana Brown, progénito de Hamilton Brown, considerado porquê proprietário de plantações e de escravizados e fundador da [cidade jamaicana] Brown’s Town)”, escreveu Donald Harris em um artigo para o jornal Jamaica Globe, em 2018.

Mas serviços de checagem, porquê o PolitiFact, encontraram registros de prosápia da família Harris na Jamaica relacionadas a uma mulher qualificada porquê “labourer” tanto na certificado de promanação porquê na de óbito.

“Labourer” era o termo usado na Jamaica para nomear aqueles que haviam sido emancipados da exigência de escravidão ou seus descendentes.

Quando o pai de Kamala chegou aos EUA vindo da Jamaica, em 1961, ele era segmento de uma pequena minoria. Havia exclusivamente 125 milénio negros imigrantes àquela profundidade em todo o país, dentre 20,5 milhões de negros na população americana porquê um todo (11%), descendentes das centenas de milhares de homens e mulheres traficados para os Estados Unidos e lá escravizados no período colonial.

O cenário atual é muito dissemelhante. Se no início dos anos 1960, 1 em cada 164 negros nos EUA era estrangeiro, em 2019, 1 em cada 10 negros no país era estrangeiro, segundo o Instituto de Pesquisa Pew Research.

São quase 5 milhões de pessoas, das quais mais da metade desembarcou em território americano depois dos anos 2000.

A chegada dos migrantes trouxe características novas à comunidade negra, mas também deixou evidente certas tensões. Segmento dos grupos negros americanos que advogam por medidas de reparo pelo histórico de escravatura do país defendem que tais compensações sejam concedidas exclusivamente para pessoas negras que possam provar serem descendentes de homens e mulheres escravizados nos Estados Unidos, e não para toda e qualquer pessoa negra que viva no país.

Existe entre estudiosos e militantes negros a percepção de que a vida na sociedade americana é mais difícil para o grupo que descende de escravizados nos EUA do que para os demais negros.

Um tanto análogo à questão do colorismo, concepção usado para denunciar que a mistura entre grupos étnico-raciais (no pretérito, frequentemente fruto da violência sexual de colonos brancos contra negras escravizadas) não criou uma convívio harmoniosa entre os diferentes, mas uma hierarquização social, com negros de pele clara normalmente tendo mais facilidades ou sendo menos alvos de preconceito/racismo do que os de pele mais escura.

“O traje de os dois políticos negros mais proeminentes do Partido Democrata terem pele clara e não terem a identidade negra americana tradicional revela as restrições de raça, cor e status nesta sociedade”, diz House.

Ele vê em Obama uma tentativa bem-sucedida de se integrar aos negros de Chicago, onde construiu sua curso política. Já Kamala, na visão de House, foi competência ao poder “pelos brancos do partido Democrata”, e não por uma militância racial específica.

Por essa perspectiva, há um claro ceticismo de estudiosos e militantes negros sobre o real significado da chegada destas figuras a postos de poder. Se Kamala fosse uma progénito de negros escravizados nos EUA, com uma trajetória também típica de alguém deste grupo, ela estaria hoje neste mesmo lugar?, questionam.

Por termo, House relembra as tensões inerentes à miscigenação na comunidade negra desde os tempos da escravatura — experiência que aliás se repetiu no Brasil.

“Posso manifestar que a história de mistura racial na comunidade negra é uma experiência complicada e perigosa. Durante a escravidão, tapume de 10% dos escravizados eram filhos de senhores de escravos nascidos da violência sexual ou da manipulação de mulheres indefesas. Muitos destes filhos foram doutrinados a se perceber porquê superiores aos demais pretos por terem sangue branco correndo nas veias. Alguns foram usados por donos de plantações porquê espiões ou capatazes. O legado dessa dolorosa e confusa experiência assombra as relações sociais entre os negros até hoje.”